Maior episódio de corrupção da história da política gaúcha, o caso dos contratos 1.000 e 1.001 da CEEE, causadores de prejuízo estimado em US$ 65,9 milhões (corrigido peloIPCA, hoje seriam R$ 238 milhões), está 20 anos à espera de sentença judicial de primeira instância.
O mundo mudou nas duas décadas que correram desde 14 de fevereiro de 1996, quando a ação de ressarcimento ao erário foi ajuizada pelo Ministério Público. A revolução digital transformou radicalmente a sociedade, o Rio Grande do Sul elegeu cinco governadores diferentes, o Brasil se tornou pentacampeão mundial de futebol, a Operação Lava-Jato explodiu. A estrela pop Amy Winehouse conheceu o auge da fama, a decadência e a morte. O ícone político Leonel Brizola também partiu.
Muita coisa aconteceu, mas o caso CEEE segue sem desfecho na 2ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, tramitando em segredo de justiça. Tamanha demora acarreta o risco de o caso prescrever e ser arquivado sem o julgamento dos réus, eternizando o prejuízo da companhia. Essa hipótese dependerá da interpretação do juiz responsável, José Antônio Coitinho.
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Promotor que atua hoje no caso, Nilson Rodrigues Filho avalia que a lentidão se deve a falecimentos de réus, o que determinou, por mais de uma vez, paralisações para localização e citação dos herdeiros. Ainda cita acontecimentos prosaicos, como a perda de volumes da ação dentro dos cartórios, o que gerou mais atraso. Também destaca a complexidade da ação, com muitos réus e advogados exercendo prazos legais.
– Tenho feito várias petições para que esse processo tenha prioridade devido ao tempo que está tramitando. Já extrapolou todos os prazos da razoabilidade. Não acredito que em menos de um ano saia a sentença – avalia Rodrigues.
O rumoroso episódio remonta à década de 1980. Em setembro de 1987, no governo de Pedro Simon (PMDB), diretores da companhia assinaram os contratos 1.000 e 1.001 com os consórcios Sulino e Conesul para a construção de 11 subestações de energia – cinco delas deveriam ser entregues funcionando e, no caso das outras seis, as empresas forneceriam os equipamentos, mas a montagem das estruturas ficaria a cargo da CEEE. Os acordos atingiram a cifra de US$ 145,5 milhões.
O processo havia sido longo. O edital de licitação foi publicado em fevereiro de 1985, ainda na gestão de Jair Soares (PDS, atual PP). Diversos entraves alongaram o procedimento, e os contratos foram assinados após Lindomar Vargas Rigotto – irmão do ex-governador Germano Rigotto (PMDB), naquela época deputado estadual – ter sido nomeado assessor do então diretor financeiro da CEEE Silvino Marcon.
Investigação adiada por cinco anos na companhia
Personagens centrais da história, Lindomar e Silvino teriam conduzido e finalizado rapidamente – em oito dias, segundo investigação posterior – as negociações para as contratações. Fizeram isso sem o conhecimento do presidente da companhia. A Superintendência de Contratos também foi alijada. As suspeitas não tardaram a surgir: em novembro de 1988, um grupo de trabalho da CEEE responsável por analisar contratos em andamento constatou irregularidades e pediu auditoria.Esse pente-fino foi adiado nos cinco anos seguintes, até que a Contadoria e Auditoria-Geral do Estado (Cage) recebeu, em dezembro de 1993, já na gestão Collares (PDT), um ofício da CEEE solicitando análise técnica nos contratos 1.000 e 1.001. Um relatório parcial ficou pronto em outubro de 1994. O conclusivo, que apenas reforçou as constatações do anterior, saiu em maio de 1995. A Cage alertou: o rombo havia sido de US$ 65,9 milhões.
– Os US$ 65 milhões de prejuízo da CEEE foram compostos pela aquisição de itens não licitados ou em quantidades acima do que havia sido licitado, além de acréscimos injustificados sobre os valores. Apuramos que houve o pagamento de atualizações monetárias em duplicidade a partir de erros de cálculo – diz Pedro Gabril, que coordenou a auditoria da Cage.
Com o primeiro relatório assinado por Gabril e outros dois auditores em mãos, a então secretária de Minas e Energia do governo de Alceu Collares (PDT), Dilma Rousseff, determinou, nos últimos dias daquela gestão, a abertura de sindicância na CEEE.
O trabalho, conduzido por um procurador, foi encerrado em maio de 1995, já no governo de Antônio Britto (PMDB), e trouxe em suas conclusões pedido para que o Ministério Público avaliasse o enquadramento de Silvino e Lindomar em crime de perturbação ou fraude de concorrência pública.
CPI apontou indícios de ganhos ilícitos
As conclusões da sindicância da CEEE foram o estopim para o caso se tornar um escândalo público. Uma efervescente comissão parlamentar de inquérito (CPI) na Assembleia devassou o episódio entre novembro de 1995 e junho de 1996. As apurações encontraram indícios desconhecidos de outros investigadores – depósitos de US$ 80 mil e US$ 70 mil feitos em 1987 nas contas de Lindomar Rigotto, conhecido como Têti. Os valores, de origem não explicada, eram superiores aos rendimentos dele. A CPI também apontou sinais de enriquecimento ilícito de Silvino Marcon.
– Foram encontradas movimentações muito próximas aos eventos decisivos dos contratos e que eram em valores superiores à renda que eles podiam comprovar. Isso deu muita sustentação à investigação parlamentar – recorda o deputado federal Pepe Vargas (PT), que foi subrrelator de sigilo bancário na CPI.
O petista, primo de Lindomar, um dos principais suspeitos, acabou assumindo a relatoria geral da CPI depois de Rubens Pillar (PPB, atual PP) fazer um relatório que não responsabilizava ninguém. Pepe aprovou um texto que acusava 28 pessoas e empresas, inclusive seu parente Lindomar. Os parlamentares apuraram desvio de R$ 42,3 milhões (R$ 210 milhões corrigidos), inferior ao apontado pela Cage.
– Lembro que, naquele tempo, as pessoas diziam ironicamente que, cada vez que ligavam um interruptor da CEEE, fazia o barulho de “plim-plim”, como se fosse uma caixa registradora – afirma Valdir Heck (PDT), que atuou como presidente da CPI.
Não há consenso a respeito de possibilidade de prescrição
Ainda hoje são comentadas as eventuais extensões políticas do caso. Mas, na década de 1990, nenhuma investigação avançou em direção ao Palácio Piratini.
– Não houve indiciamento de secretário de Estado ou do governador. Em nenhum momento houve indício material de envolvimento. Ficou circunscrito a alguns funcionários da CEEE – relata Pepe.
Ainda na fase inicial da CPI, o então promotor Keller Clós, que havia conduzido as apurações no Ministério Público, concluiu a análise sobre os contratos. Em ação civil pública ajuizada em 14 de fevereiro de 1996, pediu a responsabilização de 39 réus, sendo 28 pessoas físicas e 11 empresas. Requereu a devolução de R$ 79 milhões aos cofres públicos a título de reparação de danos ao erário – R$ 285 milhões, corrigidos.
Até hoje o caso não avançou na 2ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre. Não há sequer sentença de primeiro grau. A assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça informou que “não é possível prever” a hipótese de prescrição, o que determinaria o arquivamento do caso. A justificativa é de que essa decisão poderá “se tratar de objeto de análise do juiz”, que estava de férias nos últimos dias.
– Por se tratar de reparação ao erário, em tese, o processo pode durar mais 30 anos e, ainda assim, não haverá prescrição. Mas o direito não é uma ciência exata. Pode haver a interpretação de que a CEEE se trata de companhia mista, com aplicação das regras do direito privado, onde a prescrição é prevista. Se isso for discutido, caberá ao juiz decidir – explica Gerson Fischmann, advogado e conselheiro da OAB-RS.
Nilson Rodrigues Filho, promotor do caso, não vê motivo para prescrição, já que o MP jamais abandonou o processo. O departamento jurídico da CEEE não se manifestou. Lindomar morreu em 1999, alvejado por ladrões que haviam atacado uma boate de sua propriedade. Hoje aos 71 anos, Silvino Marcon disse que “pensaria” sobre uma entrevista, mas optou pelo silêncio.
– Imaginei que isso estava arquivado. Já são 20 anos, é uma vida. Nunca mais soube de nada. Estou totalmente fora disso – disse Silvino em breve contato telefônico em 24 de fevereiro.
“Não imaginava que demoraria tanto”
Entrevista com Keller Clós, procurador do Ministério Público
Vinte anos se passaram, Keller Clós deixou de ser promotor, ascendendo ao cargo de procurador do Ministério Público, mas a ação civil pública que moveu pedindo a condenação de 39 réus, entre pessoas físicas e jurídicas, e o ressarcimento aos cofres da CEEE em R$ 79 milhões (hoje R$ 285 milhões), continua sem sentença de primeiro grau na 2ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre. Afastado do caso há anos e atuando interinamente como subprocurador-geral de Justiça, Clós recordou detalhes do ruidoso episódio envolvendo os contratos 1.000 e 1.001. Ele esperava certa demora no julgamento, mas nem nas suas previsões mais pessimistas imaginou que se arrastaria por tanto tempo.
Dirigentes da CEEE diziam desconhecer os contratos, inclusive o presidente. A alegação é de que tudo tinha sido feito às escondidas na diretoria financeira. A investigação apurou se os contratos passaram pelo conselho de administração?
Passou, sim, no conselho de administração. Apontamos (como culpados) aqueles que firmaram o contrato e também quem o autorizou.
Se passou pelo conselho, não se trata de algo feito por duas pessoas sem o conhecimento de ninguém, como foi alegado na época.
Não. Um contrato dessa monta não é assim. Tem de ter estudo técnico para levantar as necessidades da empresa.
Quem foram os principais mentores dos contratos?
Não entramos com dolo, como se alguém tivesse premeditado. Entramos com a responsabilidade de quem deveria zelar e ver que havia sobrepreço. Isso é diferente de dizer que algumas pessoas foram responsáveis por bolar esse sobrepreço. Provavelmente, alguém fez isso, mas não apareceu. Nosso objetivo foi saber quem eram os responsáveis por assinar. Fomos pela responsabilidade civil, não pela penal.
Foi possível descobrir onde foram parar os milhões de sobrepreço?
Na época, não tínhamos internet. Não havia essa facilidade de hoje, em que está tudo gravado. Nesse caso, o fato de haver enriquecimento não era preponderante. Me causou prejuízo? Não interessa se colocou na tua conta. Tenho de provar que o causador foi tu. Pela ação civil, o que importava era comprovar prejuízo. Por isso, é ação civil de reparação de danos. Mas pode ser que pessoas tenham tido proveito.
Foi possível verificar se Lindomar Rigotto recebeu depósitos na conta superiores aos seus rendimentos?
Isso apareceu mais na CPI da Assembleia. Não foi muito nosso foco.
Os cérebros do esquema eram Lindomar e Silvino Marcon?
Os rumores eram nesse sentido, mas não chegamos a essa conclusão. Isso não está na ação civil. Não havia prova consistente que levasse a isso. Os rumores eram esses, mas faltou a prova conclusiva. Lembro de vários depoimentos em que, talvez com algumas pessoas até tentando aliviar a sua responsabilidade, sempre empurravam para a diretoria financeira. Silvino Marcon era o diretor-financeiro e Lindomar, assessor dele. O que poderia se concluir é que no financeiro se compôs a questão do preço. Mas não foi o que fizemos. Enveredamos pela responsabilidade civil.
Observando hoje, o senhor acredita que foi imperícia ou alguém premeditou?
É difícil chegar a uma conclusão. A própria CPI achou depósitos para Lindomar. E achou para o Silvino? Se chegássemos a isso, poderíamos concluir que foi engendrado lá (diretoria financeira) e eles receberam. Hoje, seria mais fácil fazer um rastreamento. Mas o fato de eu dizer que não tenho essa convicção (de organização criminosa) não afasta a possibilidade de que possa ter havido premeditação. Não apareceu de modo suficiente. Não tinha, por exemplo, como trabalhar com escuta. O caso tinha acontecido quase 10 anos atrás. Essa era a dificuldade.
Qual foi o papel do Silvino e do Lindomar no esquema?
O contrato passou por lá. Silvino, como diretor, deveria ter a obrigação pelo menos de examinar. Lindomar também entra por esse viés.
No Judiciário, são 20 anos e nenhuma sentença. Por quê?
Imaginava desde o início que seria uma ação demorada pelo número de réus. E, logo em seguida, faleceu alguém. Como é uma ação civil, tinha de citar os herdeiros. Imaginei que iria demorar, mas, sinceramente, não imaginava que demoraria tanto. Como me afastei do caso, não sei o motivo da demora. Esperava que se estendesse por sete ou oito anos.
O MP tomou medidas para cobrar do Judiciário celeridade?
Depois do ajuizamento, não fiquei mais do que um ano como responsável. Não sei se a demora é justificável.
Principais personagens
Silvino Marcon - Diretor-financeiro da CEEE à época da assinatura dos contratos, chegou a se candidatar a uma cadeira de deputado constituinte nacional, sem sucesso. Embora outros diretores da companhia tenham assinado os acordos com os consórcios Sulino e Conesul, foi apontado em depoimentos e investigações como um dos principais mentores da suposta fraude. Em meados de 1995, quando o caso eclodiu publicamente, trabalhava como chefe de gabinete do então deputado estadual Caio Riela (PTB). Foi responsabilizado pelo Ministério Público e pela CPI. A sindicância que atuou na CEEE apontou ele como beneficiário de “vantagens financeiras”. Contatado pela reportagem de ZH, hoje aos 71 anos, Marcon optou por não conceder entrevista.
Lindomar Vargas Rigotto - Até abril de 1987, era assistente do superintendente de contratos da CEEE. Depois, foi nomeado assistente executivo de Silvino Marcon na diretoria financeira. Atuando como negociador, teria destravado impeditivos à assinatura dos contratos. A sindicância o apontou como destinatário de “vantagens financeiras”. A CPI da CEEE afirmou, a partir de documentação recebida de bancos, que ele recebeu, em 1987, depósitos de US$ 80 mil em dinheiro e US$ 70 mil em cheques. Os valores eram superiores aos US$ 36 mil de rendimentos oficiais atribuídos a Lindomar. Irmão do ex-governador Germano Rigotto, que na década de 1980 era deputado estadual, Lindomar era uma figura polêmica. Morreu em fevereiro de 1999, alvejado por um tiro no crânio, quando iniciou perseguição de carro a bandidos que haviam assaltado a boate Ibiza, no litoral gaúcho, da qual era sócio. Antes disso, em setembro de 1998, se envolveu na morte de uma mulher após queda da janela do apartamento onde residia. Não houve conclusão sobre o caso.
Mais detalhes sobre o caso
– O episódio ganhou contornos misteriosos porque os contratos teriam sido redigidos e assinados de forma velada na diretoria financeira, comandada por Silvino Marcon, com assessoria de Lindomar Vargas Rigotto.
– A superintendência de contratos teria sido alijada do processo e, quando o caso estourou, o presidente da CEEE no período de assinatura, Oswaldo Baumgarten, se declarou traído. Disse ter recebido com “surpresa enorme” a notícia de que contratos haviam sido assinados sem seuconhecimento.
– Os contratos foram suspensos administrativamente entre julho de 1992 e agosto de 1993. A decisão foi referendada pelo Judiciário, a pedido do Ministério Público, e se mantém até hoje.
– Após a conclusão da sindicância, em 1995, sete funcionários da CEEE foram demitidos. Dois deles foram readmitidos por decisão da Justiça do Trabalho.
– O juiz responsável na 2ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, atualmente, é José Antônio Coitinho. O primeiro despacho dele, conforme o site de acompanhamento processual do Tribunal de Justiça, ocorreu em 1º de fevereiro de 2011. Antes dele, vários juízes atuaram.
– Promotor responsável pelo caso, Nilson Rodrigues Filho diz que, no atual estágio, um perito contratado pelos réus trabalha na formulação de laudo técnico acerca do sobrepreço.
– Depois de finalizado o laudo, poderá ser encerrada a fase de instrução do processo. O juiz, se assim entender, concederá prazo para as alegações finais das partes e, por fim, emitirá a sentença. O dificultador é que acusação e defesa podem discordar do laudo do perito, o que poderá abrir espaço para uma nova leva de contestações judiciais.
– O escândalo da CEEE e a morte de Lindomar também foram tema de reportagens do jornal Já, de Porto Alegre. O veículo foi processado pela mãe de Lindomar, Julieta, e condenado a pagar indenização. Houve recurso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ainda sem decisão.