Depois de 23 fases repletas de acontecimentos bombásticos, a Operação Lava-Jato teve no começo da manhã desta sexta-feira seu capítulo de maior impacto e com desdobramentos potencialmente mais explosivos. Luiz Inácio Lula da Silva – a figura dominante da política brasileira nas últimas décadas, o sapo barbudo que inspirou um filme indicado ao Oscar, o ex-presidente da República a quem Barack Obama chamou de "o cara" – começou o dia com a Polícia Federal diante de sua porta.
Cumprindo uma série de mandados de busca e apreensão em imóveis ligados ao líder petista e a sua família e amigos, delegados e agentes chegaram à cobertura na Avenida Prestes Maia, em São Bernardo do Campo, às 6h. Quatro carros da PF entraram na garagem do prédio, enquanto uma dezena de agentes aguardavam na portaria. Os policiais apareceram de surpresa, munidos de um mandado de condução coercitiva (que permite levar um investigado para depor), expedido pelo juiz Sergio Moro. Lula seguiu com os policiais, vestindo a camiseta de ginástica que usava quando chegaram.
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Conduzido ao Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, foi questionado durante três horas e 40 minutos por dois procuradores da República e três delegados, na presença de três advogados, por suspeita de ter se beneficiado do esquema de desvio de recursos da Petrobras.
A notícia acordou os brasileiros como se fosse um terremoto. Mesmo depois de meses de um cerco maldisfarçado, o bote da Lava-Jato sobre o presidente que deixou o Planalto como campeão de popularidade causou trepidação no país – seja de júbilo entre detratores do lulismo ou de indignação entre defensores. Do lado de fora do aeroporto, enquanto o depoimento transcorria, essa divisão da sociedade chegou a degringolar em confronto físico. Houve agressões e troca de ofensas entre militantes petistas e oposicionistas. O saguão do terminal também foi palco de tumulto.
O juiz Sergio Moro, que autorizou a ofensiva, afirmou existirem indícios de que Lula atuou no "esquema criminoso que vitimou a Petrobras" e ocultou patrimônio. "Embora o ex-presidente mereça todo o respeito, em virtude da dignidade do cargo que ocupou (sem prejuízo do respeito devido a qualquer pessoa), isso não significa que está imune à investigação", registrou em seu despacho. Ao autorizar a condução coercitiva, Moro determinou que Lula não deveria ser algemado nem filmado durante o deslocamento para a tomada do depoimento.
Em nota, a força-tarefa do Ministério Público Federal afirmou que o ex-presidente foi "um dos principais beneficiários" de crimes cometidos no âmbito da Petrobras. O procurador da República Carlos Fernando Lima detalhou, em entrevista coletiva, que Lula é investigado por, supostamente, ter recebido dinheiro, presentes e benfeitorias em imóveis das maiores empreiteiras investigadas na Lava-Jato. Segundo o procurador, seriam cerca de R$ 20 milhões em doações ao Instituto Lula e mais de R$ 10 milhões em palestras de empresas que também financiaram obras de um sítio em Atibaia e de um triplex no Guarujá, em São Paulo.
Sobre pedalinhos: "pergunta não está à altura da PF"
Giraram sobre esses temas muitas das perguntas a que o ex-presidente foi submetido durante seu depoimento. Em dado momento, quando integrantes da força-tarefa perguntaram sobre pedalinhos com os nomes de dois de seus netos, encontrados no sítio em Atibaia, ele teria perdido a paciência:
– Esta pergunta não está à altura da Polícia Federal, não está à minha altura e não está à altura dos problemas do país.
Depois de ser liberado e após pedir aos policiais para se pentear, o ex-metalúrgico que há quatro décadas ocupa um espaço de destaque no cenário político brasileiro seguiu de carro até a sede do diretório nacional do PT, em São Paulo, para proferir um dos pronunciamentos mais importantes de sua trajetória. Chegou às 12h40min e foi recebido por dirigentes do partido e por militantes aglomerados na porta do prédio, que gritavam seu nome e repetiam em uníssono:
– Não vai ter golpe!
No começo da tarde, fez um pronunciamento público em tom indignado. Atacou a "prepotência e a arrogância" da Justiça e afirmou que buscá-lo em casa às 6h para depor, em lugar de convidá-lo voluntariamente, era "pirotecnia". Também criticou veículos da imprensa, que entende estarem atuando em combinação com a força-tarefa da Lava-Jato.
– Me senti um prisioneiro hoje. Não vou abaixar a cabeça. O que eles fizeram com esse ato de hoje, é que, a partir da próxima semana, CUT, PT, sem- terras, PC do B, me convidem, que eu vou andar esse país – afirmou.
Líder sindical que se tornou célebre como opositor da ditadura militar e fundador de um partido operário que, ancorado em um discurso de defesa da ética, acabaria por desempenhar um papel crucial na história recente do país, Lula perdeu três eleições presidenciais consecutivas até ser eleito, em 2002. Quatro anos depois, foi reconduzido ao cargo. Com índices espetaculares de popularidade, conseguiu fazer de uma ministra com pouca desenvoltura e nenhuma experiência eleitoral, Dilma Rousseff, a sua sucessora. Deixou a Presidência como herói de milhões de brasileiros e celebridade mundial – um status que pode ser abalado pelos desdobramentos da ação realizada nesta sexta-feira.
A Operação Aletheia (palavra grega que significa "busca da verdade"), nome dado à nova etapa da Lava-Jato, envolveu cerca de 200 policiais federais e 30 auditores da Receita Federal, que cumpriram 44 ordens judiciais, sendo 33 mandados de busca e apreensão e 11 de condução coercitiva. As medidas foram cumpridas em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Além de Lula, estavam entre os alvos a mulher dele, Marisa, os filhos Marcos Cláudio, Fábio Luis e Sandro Luis, e a nora Marlene Araújo.
Não apenas a família foi envolvida. Amigos e assessores muito próximos também viram-se atingidos pela ação, com destaque para o diretor- presidente do Instituto Lula, Paulo Okamotto. Espécie de braço direito do líder petista, Okamotto foi interrogado durante seis horas na Polícia Federal. Ele contou ter sido questionado sobre o instituto, a empresa de palestras do ex-presidente, sua relação com empresas financiadoras, a reforma do sítio de Atibaia e a transferência de parte do acervo presidencial para o local.
A ofensiva da Lava-Jato mexeu com os brios petistas. Ainda pela manhã, o Instituto Lula divulgou uma extensa nota afirmando que a operação foi "arbitrária, ilegal e injustificável", qualificando-a como uma "violência contra a cidadania e contra o povo brasileiro". Rui Falcão, presidente do PT, tomou a palavra para conclamar os militantes à resistência. A presidente Dilma Rousseff convocou uma reunião de emergência e, ao fim do dia, manifestou-se em Brasília, falando durante 11 minutos. Na maior parte do tempo, defendeu a si mesma, respondendo às supostas acusações feitas pelo senador Delcídio Amaral (PT-MS), mas reservou também palavras ao episódio envolvendo o antecessor na Presidência:
– Quero manifestar o meu mais absoluto inconformismo com o fato de o ex-presidente Lula, que por várias vezes compareceu de forma voluntária para prestar esclarecimentos perante as autoridades, seja agora submetido a uma desnecessária condução coercitiva para prestar mais um depoimento.
A oposição, por seu lado, aplaudiu as movimentações orquestradas por Moro. Ronaldo Caiado (GO), líder do DEM no Senado, definiu a condução coercitiva como "uma prova de que as instituições brasileiras, apesar das estocadas antirrepublicanas de Lula, Dilma e PT, funcionam plenamente". A reação do líder do PSDB no Senado, Cássio Cunha Lima (PB), foi pedir a convocação de um novo pleito presidencial:
– A solução para o país é a realização de novas eleições. O governo Dilma acabou. Não só em decorrência desses episódios, mas também pela incapacidade de conduzir suas obrigações. Pela ausência completa de confiabilidade, ele acabou.
No fim da tarde, depois de um dia em que mobilizou as atenções e fez fervilharem a paixão e o ódio dos brasileiros, o ex-presidente Lula voltou à residência de São Bernardo do Campo, de onde foi retirado pela polícia às 6h. Se saiu como suspeito, voltou como mártir. Mais de 300 apoiadores estavam a sua espera em frente ao prédio, para recebê-lo nos braços com brados de "Lula guerreiro do povo brasileiro".
Lula terminou o dia discursando para centenas de militantes em São Paulo, na sede do Sindicato dos Bancários em São Paulo. Durante discurso, o ex-presidente falou da sua trajetória política, das transformações que promoveu no país e dos ataques sofridos pela presidente Dilma Rousseff – e chorou ao lembrar de cenas da sua vida, como quando pisou no Palácio do Planalto pela primeira vez.