As apreensões de maconha, cocaína e crack batem recorde, metade da lotação nos presídios é de vendedores de drogas, e, mesmo assim, o tráfico se mantém como o principal vetor de violência no Estado. São roubos, mortes por bala perdida, execuções, decapitações e tiroteios que se incorporam à rotina dos gaúchos em um cardápio de crueldades sem precedentes.
– O jovem desiste da escola ao se perder na droga, furta um celular para comprar droga, mata uma pessoa e rouba um carro para trocar por droga, a família se desestrutura devido à droga – lamenta a promotora de Justiça Lúcia Helena de Lima Callegari.
A degradação social e a brutalidade fazem parte do submundo dos entorpecentes, movidas pelo desespero de viciados em obter a droga e pela ganância dos traficantes.
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– Há 30 anos, já dizia: no momento em que o entorpecente chegar à periferia, haverá descontrole total. E isso aconteceu – observa o delegado Cléber Ferreira, diretor da Delegacia Regional da Polícia Civil na Capital.
Por ser negócio de lucro fácil, mas proibido, conflitos são resolvidos à margem da lei. Um dos casos recentes levou pânico à Avenida Sertório, na zona norte da Capital. Na manhã de 19 de março, um grupo de traficantes em um Corsa emboscou rivais em um Civic no qual estava Marcos Rogério dos Santos Guedes, o Porcão, 39 anos. Foram mais de 50 tiros de submetralhadora e pistola. O Civic subiu uma calçada, dois comparsas dele fugiram invadindo uma loja, mas Porcão, um dos líderes da facção Bala na Cara, acabou morto.
Acertos de contas sempre existiram, mas o tráfico avança as garras com mais ferocidade, aproveitando momento de fragilidade incomum das forças policiais. O descontrole sobre a segurança pública pode ser medido pelo que acontece em estabelecimentos de saúde.
Virou rotina traficantes invadirem hospitais para matar desafetos – três casos entre 2011 e 2014 em Porto Alegre e Gravataí – e exigir, de arma em punho, atendimento a bandidos feridos. Na noite de 1° de março, enquanto o vice-prefeito da Capital, Sebastião Melo, negociava com Polícia Civil e Brigada Militar a melhoria da vigilância no postão da Vila Cruzeiro, fechado no dia anterior por falta de segurança, um tiroteio nas imediações deixou centenas de pessoas em pânico. Em setembro, o mesmo local foi invadido por oito traficantes feridos (um morreu), fugindo de algozes.
– A situação é perturbadora em Porto Alegre. Quase todos crimes graves estão com índices elevados. Faltam policiais civis e militares, e o armamento é obsoleto – analisa o procurador de Justiça Marcelo Ribeiro.
Efetivo da BM é o mais baixo em três décadas
Além de menos equipado, o aparato estatal de segurança abre flanco para o avanço da violência por conta de deficiências de estrutura e de investimentos. O efetivo atual da BM é o mais baixo em três décadas. Em 2015, fiscalizou o menor número de carros desde 2007 e efetuou menos prisões em comparação com os últimos seis anos. Ao mesmo tempo em que desaparecem PMs nas ruas, surgem criminosos à solta. São 5 mil condenados, a maioria traficantes, ladrões e homicidas, com permissão para ficar em casa, cumprindo prisão domiciliar, em saída especial à procura de vaga ou sob monitoramento eletrônico à distância, porque o Estado abdicou de construir albergues para os regimes aberto e semiaberto.
O resultado disso não poderia ser diferente: o roubo de veículos atingiu em 2015 o mais elevado índice da história. Nunca se assaltou e matou tantas pessoas como no ano passado, e os latrocínios estão em curva ascendente.
E os 75 homicídios registrados em Porto Alegre em fevereiro representam o mais alto número de mortes em um único mês nos últimos quatro anos.
Impunidade é trunfo do tráfico
Embora 49,7% da massa carcerária do Estado seja de traficantes – só no ano passado foram apreendidas 10,2 toneladas de drogas e capturadas mais de 650 pessoas pelo Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico –, barões da droga seguem livres.
– A impunidade do traficante é grande pela dificuldade de reunir provas contra ele, e acaba absolvido nos processos – observa o procurador de Justiça Marcelo Ribeiro.
Ele lembra que, em geral, condenações acontecem em júris por homicídios. Um desses casos pode levar à cadeia três homens ligados ao tráfico no bairro Vila Nova. Depois de quase um ano, foram indiciados pela morte de Laura Machado Machado, sete anos, vítima de bala perdida de fuzil. Ainda assim, matadores são minoria entre presos, 4,7% no RS, equivalente a 1,5 mil condenados, em universo de 32,6 mil presos. Um percentual ínfimo, considerando que, apenas nos últimos três anos, 6,6 mil pessoas foram assassinadas – 80% vítimas da guerra no tráfico.
Em média, quatro em cada 10 homicídios ocorridos na Capital têm o autor desconhecido ou faltam provas.