Dentro de uma das dezenas de casas que povoam a Vila Alto Erechim, no bairro Nonoai de Porto Alegre, no final da tarde de quinta-feira, um menino de oito anos foi resgatado com o peito ferido por um disparo de arma de fogo. O responsável por apertar o gatilho seria um amigo, de 10 anos. E quem teria fornecido a arma à criança seriam traficantes.
– Só ouvi a gritaria e o João* sendo carregado nos braços por vizinhos. O tiro, não ouvi – conta uma moradora, que prefere não se identificar. De onde ela mora, é possível ver a casa de tijolo à vista onde diversas crianças estariam brincando quando o disparo foi efetuado. Enquanto a mãe trabalhava, a vítima e dois irmãos ficavam com os filhos de uma vizinha na casa dela. Um dos filhos da mulher foi apontado por João como autor do tiro.
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Através de gestos de "sim" e "não" com a cabeça, ele ainda disse aos policiais civis no Hospital de Pronto Socorro (HPS) que o disparo foi intencional. A mãe, que estava com o filho na UTI pediátrica do HPS, não quis conversar com a reportagem. Mas disse à polícia que as crianças costumavam brigar.
– Toda criança briga e brinca. Não vejo isso como motivo para um menor pegar uma arma, apontar para o colega e fazer o disparo – afirmou o delegado Rodrigo Pohlmann Garcia, responsável pelo caso. – O fato de conviverem com o tráfico na porta de casa, de estarem acostumados a ver pessoas usando arma, de ser comum ver gente morrer, isso tudo influencia na facilidade com que crianças têm de usar uma arma.
Arma do disparo não foi localizada
O menino de 10 anos confessou ter atirado. Segundo a mãe dele, o filho teria pego a arma para mostrar ao amigo e o dedo teria escorregado, provocando o disparo. Testemunhas relataram à polícia que os mesmos traficantes que alcançaram a arma, não encontrada pela polícia, ao menino voltaram ao local para buscá-la após o ocorrido.
– Acreditamos nisso, porque muito próximo dali existe um ponto de tráfico. Só não sabemos se houve algum tipo de incitação ao disparo – disse Pohlmann.
Pela marca no peito de João, próximo ao ombro, a polícia acredita que a arma usada foi um revólver de "calibre pequeno", 32 ou 22. O projétil se alojou no corpo do menino, que passou por cirurgia ainda na noite de quinta. Na tarde desta sexta-feira, segundo o HPS, ele permanecia internado em estado grave.
Como o suposto autor tem menos de 12 anos, não se trata de ato infracional e, por isso, não cabe sanção socioeducativa. O caso seria remetido pela polícia ao Conselho Tutelar, para encaminhamento de medidas protetivas às crianças. Quanto à origem da arma, ainda não há definição se investigação ficará a cargo do Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (Deca), do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc) ou da delegacia da região.
De acordo com o conselheiro tutelar Edemar Sarnagotto, responsável pela região do bairro Nonoai, a família da vítima já é acompanhada pelo órgão desde o final de 2014. Na época, houve denúncia anônima pelo Disque 100 sobre negligência familiar a João e a um irmão mais novo. Eles moravam em outra cidade da Região Metropolitana e se mudaram em 2015 para a zona norte da Capital. Houve encaminhamento para atendimento social, mas, como houve troca de conselheiros em outubro do ano passado, Sarnagotto não soube dizer se a família seguiu as recomendações anteriores, como matriculá-los em escola e frequentar o Centro de Referência de Assistência Social (Cras).
Segundo dados das secretarias de Educação, João não está matriculado nem na rede estadual nem na municipal. O suposto autor estaria de férias, mas estuda em uma escola estadual do bairro. A partir de agora, serão acompanhados pelo Conselho Tutelar.
*Nome fictício utilizado para não identificar a vítima, conforme determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
Entrevista
"A realidade das crianças é essa. Um tiro é comum", diz conselheiro tutelar da região
Há sete anos lidando com problemas da infância e da juventude junto ao Conselho Tutelar, o educador Edemar Sarnagotto ficará responsável por acompanhar as duas crianças – vítima e suposto autor. Ele comenta o cenário de precariedade social na região do Beco do Rio Tejo, onde ocorreu o caso.
O que leva uma criança a atirar na outra?
É do contexto, do local. As crianças que moram ali estão expostas diariamente a situações de risco, balas perdidas, conflitos entre traficantes. A realidade delas é essa, para elas o que aconteceu, um tiro, é comum.
Conhece a realidade das duas famílias?
Não conheço ainda onde eles moram. Mas na região da Vila Alto Erechim vivem milhares de famílias em condições precárias, em terreno pequeno e superacidentado, com concentração de casas bem acentuada. A vulnerabilidade aumenta o risco de uma situação dessas acontecer. Muitas crianças ali não tem acesso à escola, ficam sozinhas, com irmãos ou vizinhos. Isso aumenta o perigo de contato e de domínio do tráfico.
O que o Conselho pode fazer para mudar essa realidade?
Vamos passar a acompanhar o caso de perto e trabalhar em rede. É preciso envolver assistência social, escola, psicólogos. O menino que atirou precisa entender que isso está errado sem ser criminalizado. A vítima também precisa de acompanhamento para não ficar traumatizada. A saída é o trabalho em rede.