As medidas de ajuste fiscal adotadas por José Ivo Sartori e a convicção de que o governo estadual "não pode mais ser o pai de todos", nas palavras do próprio governador, sugerem algo que a cúpula do Palácio Piratini não gosta de admitir: a agenda liberal, pautada pela redução do Estado e abominada pelo funcionalismo público, marcou o primeiro ano de mandato. Isso não significa que as iniciativas destinadas a reduzir o tamanho e o custo da máquina tenham decorrido de determinação ideológica. Resultaram de pragmatismo político.
- A agenda liberal está na pauta, sim. Sartori não diz isso por causa da sua origem e por ter o respeito da esquerda. Não quer perder essa conotação para poder fazer as mudanças necessárias para salvar o Estado. E vai fazer. Ainda vem muita coisa por aí - diz o ex-ministro Luis Roberto Ponte, que atuou na administração de Germano Rigotto (PMDB) e é um dos próceres do PMDB gaúcho.
O governador iniciou a vida política no Partido Comunista Brasileiro (PCB), quando a sigla ainda vivia na clandestinidade, na década de 1970. Com a redemocratização, optou pelo PMDB. Não gosta de rótulos, evita debates ideológicos e costuma dizer que não nutre "preconceitos" contra nenhum tipo de cartilha.
Em discurso no Fórum da Liberdade, em abril de 2015, classificou o "aparato estatal", no Rio Grande do Sul, como "fraco onde sua presença é essencial e excessivo onde poderia estar ausente". Concluiu que, se não pode ajudar, "o Estado não deve atrapalhar" - máxima repetida em outras ocasiões. Foi aplaudido pelos empresários na plateia.
- O governo vem dando sinais de que segue a linha liberal, mas Sartori não pode ser definido como um liberal, pelo menos não no sentido clássico. Um verdadeiro liberal defende reformas mais profundas. Espero que isso esteja nos planos daqui para a frente - afrima o presidente do Instituto de Estudos Empresariais (IEE), Ricardo Heller.
Especialistas veem tentativa de modernização e oportunidade
Ex-deputado estadual pelo PT e ex-chefe da Casa Civil na gestão de Olívio Dutra (PT), Flavio Koutzii reconhece as dificuldades financeiras do Estado, mas discorda da linha adotada - para ele, "neoliberal". Classifica como "catastrófico" o ajuste imposto por Sartori e o compara à ex-governadora Yeda Crusius (PSDB).
- Ele está fazendo o mesmo que Yeda fez com o déficit zero, às custas da desvalorização dos funcionários públicos. O resultado é um Estado capenga, com servidores desmotivados. Não quero soar pejorativo, mas é uma prática neoliberal equivocada - afirma Koutzii, lembrando que o PT optou, "conscientemente, por ampliar o endividamento para valorizar o quadro de pessoal".
Para o cientista político Bruno Lima Rocha, da Unisinos, o primeiro ano de Sartori à frente do Palácio Piratini representa "a velha direita oligárquica gaúcha tentando se modernizar". Céli Pinto, professora da UFRGS, identifica apenas "senso de oportunidade" nas atitudes do governador:
- Ele adota do discurso que está na moda. É conveniente para ele e para o PMDB.
O economista Fábio Pesavento, da ESPM-Sul, e o cientista político Hermílio Santos, da PUCRS, têm outra avaliação. Eles entendem que não havia alternativa e que as medidas para enxugar o Estado nada têm de ideológicas. Decorrem exclusivamente das circunstâncias e seriam pragmáticas.
- O Estado chegou ao ponto de não ter recursos nem para pagar a folha. Alguma coisa precisava mudar - diz Pesavento.
- Até o Syriza, partido de extrema esquerda da Grécia, está fazendo ajuste fiscal para salvar o país porque não tinha saída. Com Sartori é a mesma coisa - conclui Santos.
ENTREVISTA
"O ajuste é resposta às circunstâncias, mas as medidas não são neutras", diz especialista em Admninistação Pública
O vice-coordenador do curso Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo, Marco Antonio Carvalho Teixeira, avaliou o primeiro ano de governo de José Ivo Sartori. As medidas de reequilíbrio das contas, disse, teriam de ser tomadas independentemente de posição ideológica, apesar de ressalvar que não há "neutralidade" nas decisões.
Para superar a crise, Sartori adotou medidas de ajuste fiscal. É o melhor caminho?
O governador do Rio Grande do Sul deparou com um problema histórico nas finanças do Estado, que chegou ao limite. Independentemente de ideologia, medidas de ajuste fiscal teriam de ser tomadas. O ajuste é uma resposta às circunstâncias, mas é óbvio que essas medidas não são neutras. As respostas poderiam ser diferentes, preservando algumas áreas em detrimento de outras. As escolhas definem o perfil do governo.
O governo estadual está seguindo uma linha liberal?
Ao que parece, sim. O próprio discurso de Sartori indica isso, quando ele afirma que o Estado não deve atrapalhar, que não pode mais ser o pai de todos, que é um doente em estágio terminal. É a agenda do Estado mínimo, um pouco na linha do que está sendo encaminhado pelo novo presidente da Argentina, Mauricio Macri.
Cortar despesas ao máximo, limitar reajustes aos servidores públicos e praticamente zerar os investimentos não são medidas arriscadas?
Toda ação tem uma consequência e pressupõe escolhas. Se o Estado perde a capacidade de investimentos, deixa de contribuir para o desenvolvimento, e o resultado pode ser o empobrecimento da população, se ela ficar à mercê do mercado. Também há o descontentamento de setores que se sentem afetados pelas medidas. É o caso dos servidores públicos. Aí vêm as greves e os protestos, inclusive envolvendo policiais, como ocorreu no Rio Grande do Sul.
Havia como escapar dessa situação de risco?
O risco é gigantesco, mas, nesse caso, não havia como fugir de medidas de ajuste. O que se pode questionar são as escolhas. Será que não havia alternativas menos dolorosas?
O que mais Sartori poderia ter feito, então, para amenizar o impacto na sociedade?
Medidas duras precisam ser acompanhadas de ações paralelas que mostrem que o governo pode ganhar fôlego no médio prazo. E precisam envolver a sociedade no processo como um todo, por mais que as decisões sejam de caráter emergencial. Seria importante dar destaque a algum grande projeto de melhoria na arrecadação, dar mais visibilidade ao combate à sonegação, por exemplo. Essas questões talvez sinalizassem uma perspectiva mais positiva, dando legitimidade social a medidas amargas.
A antecipação de receitas, usada para obter recursos no curto prazo, pode comprometer o futuro?
Tudo o que você antecipa agora vai fazer falta lá na frente. Sartori está ganhando tempo, mas criando um problema para resolver depois. Se não aumentar a arrecadação, o problema poderá reaparecer numa escala bem maior mais tarde.