Monica de Bolle circula com segurança por um ambiente ainda predominantemente masculino: o pequeno círculo de intelectuais com experiência acadêmica e de mercado e estofo suficiente para discutir os rumos da economia brasileira. Mais do que isso. A economista de 43 anos tem pautado o debate macroeconômico no país ao trazer para o centro das discussões o controverso termo "dominância fiscal", propondo que o Banco Central controle a inflação por meio do câmbio e não mais com elevação da taxa de juro.
Doutora em economia pela London School of Economics, Monica trabalhava no FMI quando foi uma das principais responsáveis pela bem-sucedida reestruturação da dívida do Uruguai, na década passada, que serviria de modelo para a Grécia mais tarde. Hoje, atua como pesquisadora no Peterson Institute for International Economics, renomado centro de pesquisa em Washington.
Foi também a responsável pela tradução para o português do best seller O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty, e garante ter sentido de perto o "patrulhamento ideológico" que tem marcado as discussões políticas no Brasil. Afiada nas opiniões, faz um alerta:
- O aumento do desemprego hoje é resultado de escolhas malfeitas no passado. O ajuste fiscal ainda não começou.
Recessão, inflação alta, taxa de desemprego em dois dígitos. Estamos revivendo o Brasil dos anos 1980?
O que a gente tem de muito parecido é esta situação de política fiscal completamente descontrolada e uma dívida do setor público crescente, em um nível já preocupante. Sem ajuste fiscal, com a economia mal e a taxa de juro implícita, que se paga sobre a dívida, subindo, a situação é extremamente preocupante. A vantagem, mas nisso também somos mais parecidos com a década de 1980 e menos com o início dos anos 2000, é que grande parte da nossa dívida está em moeda local, e não estrangeira. Isso leva a uma tentação por parte do governo de deixar a inflação subir porque serve como uma forma de imposto e corrói parte significativa dessa dívida. Nesse aspecto, acredito que estamos vivendo uma situação similar à da década de 1980, sem a boa música e sem o futebol.
A senhora trouxe para o centro do debate econômico nos últimos meses a expressão "dominância fiscal." Do que se trata exatamente?
É uma tentativa de identificar a doença que nos aflige. Sabemos que sofremos de várias doenças, mas, em termos de entrave para a política econômica, a principal hoje me parece ser a dominância fiscal. Não existe uma definição padrão do termo, as pessoas interpretam de diversas maneiras, mas, colocando de uma forma mais simples, é uma situação em que o déficit público cresceu a tal ponto que se o Banco Central (BC) tentar agir para conter a inflação, aumentando o juro, vai prejudicar mais as contas públicas. É um pouco a situação que temos hoje, dado o tamanho do déficit público brasileiro, que está na faixa de 9,2% do PIB. Um resultado que é muito elevado - mesmo quando você compara com economias desenvolvidas no auge da crise de 2008, e isso é um ponto importante.
A situação é tão grave assim?
A situação é realmente dramática. Quando você vê isso como obstáculo, fica fácil perceber as limitações do BC, que vive duas restrições importantes que o impedem de continuar aumentando o juro para combater a inflação: a gravidade da recessão que vivemos e o tamanho do déficit. Tendo em vista esse quadro, juntamente com a tentação do governo de deixar a inflação subir, na ausência de um ajuste fiscal, que é a única coisa que resolve o problema hoje, vivemos um quadro à la anos 1980.
A solução é alguma medida de emergência para controlar a inflação que não inclua o juro?
A minha sugestão e meu principal objetivo quando eu trouxe o debate e escrevi o artigo que gerou tanta polêmica (em 30 de setembro, Monica publicou no site do Peterson Institute for International Economics, baseado em Washington, o artigo intitulado Brazil needs to abandon inflation targeting and yield to fiscal dominance, que deu início ao debate sobre dominância fiscal) era dizer o seguinte: se nada fizermos, teremos um processo pernicioso e muito danoso para a economia brasileira, principalmente para aquelas pessoas que ascenderam à classe média nos últimos 10 anos. Sabe esta história do PT de que foram capazes de tirar 35 milhões de brasileiros da pobreza e levá-los à classe média? Pois bem, são exatamente essas as pessoas que mais sofrem com o aumento do desemprego, de um lado, e o crescimento desenfreado da inflação, de outro. O ganho dos últimos 10 anos vai ser desfeito em menos de dois anos. É isso que queremos? Não fazermos absolutamente nada e deixarmos a inflação resolver o problema (da dívida)?
A sua sugestão é usar a taxa de câmbio para controlar a inflação, não?
A solução única é o ajuste fiscal. Não existe outra que não passe por isso. Mas talvez haja maneiras de se fazer uma ponte até lá sem ter de passar por um processo inflacionário doloroso. Foi essa discussão que eu tentei colocar. Pensando em alternativas, a que resta, cheia de vantagens e desvantagens, é a da âncora cambial.
Como avalia a mais recente decisão do Copom de manter a taxa de juro em 14,25% ao ano?
A decisão foi correta. Se há, de fato, dominância fiscal no Brasil, uma elevação do juro poderia provocar um desarranjo ainda maior. Mesmo que não haja dominância, elevar o juro em meio à pior recessão já registrada parece má ideia, para dizer o mínimo. A forma como o Copom tomou essa decisão, porém, foi demasiadamente atrapalhada. Se não havia convicção no colegiado, que tivessem prestado um pouco mais de atenção nas mensagens que enviaram nos últimos 45 dias.
O regime de metas de inflação deve ser abandonado pelo governo?
O fato é o seguinte: se temos hoje problema de dominância fiscal, na prática, o regime de metas de inflação já não existe. O artigo que escrevi causou certo estranhamento porque utilizei a palavra "abandono". Mas, na prática, o regime já foi abandonado em uma situação de dominância fiscal. Regime de metas de inflação é você responder com aumento de juro às expectativas de alta da inflação para manter a estabilidade de preços. Se você não pode fazer isso, não tem regime de metas. Se a palavra abandono é muito forte, falemos, então, de suspensão. O regime de metas hoje está suspenso. Ou encontramos uma solução temporária ou convivemos com a consequência inflacionária.
Economistas de vertente desenvolvimentista, como o professor Paul Singer, por exemplo, afirmam que o ajuste fiscal causará ainda mais desemprego.
Para mim, esse é um pensamento equivocado. A gente não teve ajuste fiscal no Brasil ainda. A recessão que temos hoje é consequência dos erros de política econômica do passado. Isso é uma coisa que as pessoas sempre esquecem. Políticas econômicas agem com defasagem. Nós cometemos uma série de erros nos últimos anos, cujas consequências estamos colhendo agora. A recessão resulta disso e também de um problema no centro de uma das maiores empresas do país, que tem interligações muito fortes com o restante da economia, a Petrobras. Temos duas causas fundamentais para o tamanho da recessão: os desmandos macroecônomicos nos últimos anos e os problemas da Petrobras. Nada a ver com ajuste fiscal. Não houve aumento de imposto ainda. O que houve foi reajuste de preço. Aumento real, pouca coisa até agora. Corte de gastos, pouco também. Se você olhar os dados friamente, não houve ajuste fiscal no Brasil. Não dá para atribuir a recessão a um ajuste fiscal que não aconteceu.
Mas a austeridade econômica na Europa levou o desemprego às alturas, não?
Existe no país uma visão completamente equivocada de um debate que foi relevante para a Europa. Lá, quando se discutiam os efeitos da austeridade sobre a capacidade de crescer das economias, não se falava que não deveria haver austeridade, mas que cada nação deveria ter um desenho diferente de ajuste. Há países que não são capazes de aguentar o tamanho do tranco que na época estavam pedindo a eles, a Grécia é o exemplo mais notório disso. Outros países, como a Espanha, por exemplo, estão crescendo. Olhe para a Europa, veja o que aconteceu com as políticas de austeridade: a Espanha, que teve o ajuste mais severo, está crescendo. A Itália está melhorando. Portugal continua em uma situação difícil, mas também está melhorando. Se você tem um problema fiscal, você tem de ajustar as contas públicas, não há jeito. A saída para um problema de gastança excessiva não é gastar mais. Falta uma lógica básica nesse argumento.
É possível crescer mesmo fazendo ajuste?
No Brasil, tivemos vários momentos em que adotamos uma política fiscal contracionista e que foram favoráveis ao crescimento. É só pegar a história brasileira dos últimos 30 anos. Os anos 1990 e 2000 são exemplos. O governo Lula é um caso clássico disso. Quando o ministro Levy comandou o Tesouro Nacional (de 2003 a 2006) fez um ajuste rigoroso, atingindo metas de superávit primário que há muito não se via no país, dando condições para a economia crescer.
A senhora citou o primeiro governo do ex-presidente Lula. Desde de 2003, tivemos três governos do PT, com fases econômicas bem diferentes. Saímos de uma década de crescimento para a recessão. Onde foi que o governo errou?
Não exatamente no ato da resposta à crise de 2008, porque ali conduzimos bem a economia, tomamos as medidas contracíclicas que precisavam ser adotadas, diminuímos o juro, tínhamos espaço para reduzir a política fiscal e os bancos públicos para atuarem impedindo uma recessão mais forte. Começamos a errar muito a mão a partir de 2010 porque, naquela altura, já não havia mais uma crise tão severa no mundo. Havia a Europa, que começava a despontar como um problema, mas o centro da crise no sistema financeiro já havia sido atenuado em grande medida. E o Brasil, em vez de puxar o freio nas medidas que haviam sido tomadas para combater a crise e começar a colocar a economia nos eixos, reduzindo os estímulos fiscais e de crédito público, foi na contramão. Fez o contrário. Turbinou as políticas adotadas para gerar um crescimento extraordinário, já que era ano de eleição. O nosso milagre econômico durou apenas 12 meses. E, dali em diante, continuamos batendo na mesma tecla.
É a favor da volta da CPMF?
Eu não gosto da volta da CPMF, assim como qualquer outro economista. É um imposto distorsivo, que trava o funcionamento do sistema financeiro de uma forma muito severa, mas é impossível de sonegar e tem uma base de arrecadação muito grande. É uma medida tampão. Na falta de coisa melhor, você acaba fazendo por um tempo limitado. E a proposta dele é esta. É a ponte para o ajuste estrutural de médio prazo que tem de ocorrer. Muita gente defenderia a CMPF se estivesse no cargo. É fácil criticar estando de fora. Estando no cargo, é outra história.
Como avalia a escolha de Nelson Barbosa para o Ministério da Fazenda? Ele terá condições de fazer as reformas necessárias?
Ministro novo, problemas velhos, soluções equivocadas. O que se poderia esperar de um dos genitores da nova matriz econômica? Muitos defendem o novo ministro, afirmando que ele é fiel escudeiro do ajuste fiscal e das reformas mais amplas de que o Brasil tanto necessita. Tenho de ver para crer.
Quando o Brasil vai voltar a crescer?
Acho que, antes disso, passaremos por um período muito difícil. No final das contas, antes de sair do marasmo, antes de voltar a crescer de forma estruturada, acima de 2%, precisaremos fazer reformas estruturais que ainda não foram feitas. Só assim o Brasil vai poder se tornar a potência mundial que todos esperam que seja.
Não teremos crescimento econômico em 2016, então?
Ainda é um ano de queda de PIB, infelizmente. Em 2017, acho que começamos a sair dessa situação, mas o patamar que teremos depois disso vai depender de como o governo, o sistema político e as diversas forças vão se articular: em torno das reformas ou de um tapa-buraco. Eu espero que não seja em torno de um tapa-buraco.
Diferentemente de outros campos do conhecimento, a economia é, ainda hoje, dominada pelos homens. Há pouquíssimas mulheres envolvidas em debates sobre macroeconomia no Brasil, tanto no mercado quanto na academia. Qual a razão disso?
Eu me faço essa pergunta todos os dias. É um enigma que não consegui entender muito bem. O Brasil tem economistas mulheres muito boas, muito preparadas. Eu realmente não sei responder.
É um fenômeno que existe apenas no Brasil?
Acho que não é uma síndrome nacional, não. Hoje eu moro em Washington e, em vários eventos de que participo por lá, sou a única mulher na mesa. É um ambiente totalmente masculino.
Já sentiu alguma dificuldade na carreira devido ao fato de ser mulher?
Não, mas já houve algumas situações. Ocorreu comigo recentemente nos Estados Unidos. Estava sentada para um painel com outros três economistas e acadêmicos, todos homens. Na placa de identificação todos os homens eram "Dr." (doutor) e eu era "Mrs."(senhora). Mas eu também sou doutora. Por que a diferença? Essas coisas acontecem, mas eu lido bem com isso.
A senhora já reclamou algumas vezes do nível do debate no Brasil. Acredita que o país passa por uma espécie de patrulhamento ideológico?
Com certeza. Se você dá a cara a tapa para falar algo que não é consenso, sofre patrulhamento de todos os lados. Sofre daqueles que gostariam de estar dizendo a mesma coisa que você, mas não dizem, e sofre patrulhamento daqueles que acham que você, ao propor alguma coisa, pode estar indiretamente ajudando o governo, quando não deveria. Infelizmente, no Brasil, não existe distanciamento. Ou você joga em um time ou joga em outro. Você não pode jogar a favor do país. Isso acontece também em outros lugares do mundo. É só ver o clima de pré-campanha nos Estados Unidos. A economia não é o centro do debate, mas, nos outros temas, os diversos candidatos e as pessoas que os apoiam se colocam dessa maneira. Neste momento do Brasil, as pessoas deveriam tirar seus chapéus ideológicos, que todos têm, e tentar entrar no debate de uma forma mais saudável e amigável.
Os rótulos de "liberal" ou "neoliberal" a incomodam?
Demais. O Bernardo Guimarães (professor da Fundação Getulio Vargas) escreveu um texto muito bom sobre isso um tempo atrás. Esses rótulos só existem no Brasil, em nenhum outro lugar do mundo. Mesmo em Washington, onde moro. Você vai a encontros e tem uns mais à esquerda, uns mais à direita, uns mais progressistas e uns mais conservadores, mas ninguém sai rotulando economista de "desenvolvimentista", de "neoliberal", de "neodesenvolvimentista", "neo isso", "neo aquilo". É uma maluquice do debate brasileiro.
A senhora foi a responsável pela tradução para o português de O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty, umas das obras mais comentadas de economia na década. Como foi a experiência?
Foi uma coisa meio fortuita que apareceu. Eu já havia lido o livro na versão inglesa, nem havia sido no original (em francês). A versão inglesa foi muito bem feita embora destoe bastante da versão francesa. A pessoa que traduziu para o inglês é de altíssimo nível, professor de Harvard e fez um trabalho excelente porque a obra no original é bastante densa, de não tão fácil leitura quanto a tradução. O Piketty escreve para o Liberatión, tem umas colunas um pouco excessivamente "torcerdoras", eu diria, sem muita argumentação técnica, mas o livro é extraordinário pela fórmula e pelo fôlego que tem. Traz uma discussão muito boa a respeito da desigualdade, de uma forma bem organizada e atraente. A editora Intrínseca comprou os diretos do livro. Como sou muito amiga da equipe, me convidaram para ajudar na revisão técnica. Mas o livro tem muitos termos econômicos. Se você não tem um tradutor que entenda os conceitos mais complexos, a obra perde um pouco a força. Logo depois, eu recebi o convite para traduzir. Foi uma experiência muito boa, embora tenha havido muito patrulhamento ideológico também. "Como pode uma neoliberal traduzir o Piketty?", diziam alguns, "A Monica traduzindo Piketty?", criticavam outros.
Por diversas vezes, em seus textos, a senhora adota o estilo de conto ou fábula para falar sobre a economia brasileira. Cogita dar alguns passos no mundo da literatura, investir em ficção, por exemplo?
Eu tenho um livro de ficção na gaveta. Mas também tem um outro que estou escrevendo sobre a situação brasileira hoje a partir de artigos meus publicados nos últimos anos em jornais brasileiros.
Já tem data para publicação?
Ainda não, mas tem um título preliminar, que é o nome de um artigo meu: "Como matara borboleta azul".
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