Quando perdemos nossos pais ficamos órfãos. Quando perdemos o cônjuge ficamos viúvos. Quando os pais perdem um filho não há palavra para o que eles sofrem. Não conseguimos denominar o estado civil da maior das dores. Ela é tão grande que o verbo não abarca, tão sem razão que a razão não lhe alcança um nome. Perder um filho é o avesso de toda lógica. É perder num golpe o passado, o presente e o futuro. Abre-se um buraco sem fundo, uma vertigem sem fim, uma amargura sem bordas.
Todos os lutos acabam, ou encontram uma resolução, menos esse. Dói perder um pai, uma mãe, mas é um degrau da vida e depois seguimos. É duríssimo enterrar um irmão ou um amigo, mas depois seguimos. Mas perder um filho nem nome tem. É só a sensação que algo nos foi amputado. Ficamos meio humano meio fantasma.
No começo esses pais vivem por viver. Obedecem uma ordem para seguir em frente que nem sabem de onde vem. Toda comida tem o mesmo gosto de areia, o mundo perde as cores, o ar pesa para entrar, até respirar dói. O Natal não faz mais sentido. O almoço de domingo é apenas a continuação da missa. Os aniversários servem para chorar.
Eles só saem desse estado quando percebem que outros vivos precisam deles. Não é justo para com os que ficaram ter um adversário tão importante, especialmente se houver irmãos. O melhor sempre é deixar os mortos partirem. Nós no nosso mundo, eles no deles. Mas nos casos de pais que perdem filhos essas regras devem ser flexibilizadas, encontrar outro equilíbrio. Esses pais não podem dar-se ao luxo que seus filhos morram de novo. São as lembranças que os mantêm, de alguma forma, vivos.
O filho é a única certeza de que algo de nós restará após a partida. Os pais são os avalistas de uma vida que eles fundaram e ajudaram a erguer. Quando você é filho e algo acontece, ainda que mínimo, é para eles que darás a notícia. Um pai, quando conquista algo, é com os filhos que quer primeiro partilhar. Esse acervo de interesses mútuos, de referências cruzadas, vai servindo de parâmetro para a vida do filho que se sabe testemunhado. Os pais sentem que olhar para o filho o faz viver, crescer. Como deixar de pensar neles, se essa ocupação psíquica, durante anos, cimentou o caminho dos filhos? A morte torna esse olhar paterno impotente, o exercício dessas trocas inúteis. A perda os faz serem injustamente despedidos do seu melhor e mais amado trabalho, não existe aposentadoria para a função de pai nem de mãe.
Não critiquem as manifestações de luto dos pais que perderam seus filhos na boate Kiss que recém fechou três anos. Parece exagerado porque é exagerado. Mas é assim que é, e talvez seja assim que deva ser. Não lhes neguem a paternidade que lhes restou.