Para os moradores do bairro José de Abreu, em Quaraí, na Fronteira Oeste, solidariedade é muito mais do que uma palavra bonita e um anseio em época de Natal. Sensibilizados com os vizinhos que perderam praticamente tudo na maior enchente já registrada no município, eles compartilharam suas casas na quinta-feira e prepararam uma ceia coletiva entre as ruas Doutor Acauã e Chico Correia para 30 famílias. As portas seguirão abertas até que todos retornem, não importa a data.
Cheias deixam mais de 3 mil desabrigados em Quaraí
Apesar da grave situação - alguns não conseguirão recuperar nada -, os desabrigados não reclamam. Reunidos em torno de uma churrasqueira improvisada numa rua tomada por móveis, eletrodomésticos, barracas, lonas e brinquedos, eles trocavam palavras de incentivo e diziam estar contentes em ajudar e ser ajudados.
Os que conseguiram resgatar bens antes da invasão da água deixaram os pertences espalhados entre os vizinhos e as calçadas. Em meio a histórias de pescarias, bailões e caçadas, eles demonstravam não se abater.
- Ficamos assim porque todo mundo confia um no outro, ninguém mexe no que não é seu. Natal, para mim, sempre será Natal - diz Celso Cavalheiro Lemes, 51 anos.
Com prejuízo de R$ 4 milhões, Quaraí pede ajuda governamental
Muitos dos que conversaram com Zero Hora haviam enfrentado outra grande enchente, em 2001, quando o Rio Quaraí atingiu 14 metros. Dessa vez, porém, eles foram surpreendidos por um rio com nível de 15 metros e 28 centímetros, a maior cheia registrada pelos órgãos públicos. Alda Fontoura Pereira, 65 anos, estava na enchente de 2001 e foi ajudada. Hoje, ela retribui hospedando mais de 15 pessoas:
- Eu me sinto melhor hoje de poder proporcionar um chuveiro para o pessoal tomar banho e passar um Natal decente.
No caso de Antônio Ximenes, 48 anos, foi ainda pior. Há 14 anos, ele ficou desabrigado na véspera do Natal, retornou para casa no dia 30, mas horas antes do Réveillon teve de sair novamente.
- É uma noite de alegria igual, só que longe do lar, é diferente. Vou levando, não adianta reclamar - afirma.
Ruas submersas e prejuízos milionários
Os estragos causados pela enchente deste final de ano recém começaram a ser contabilizados pela Defesa Civil e prefeitura de Quaraí, que decretou situação de emergência, mas devem ultrapassar os R$ 4 milhões. Plantações inteiras de arroz foram perdidas, animais morreram e casas ficaram praticamente submersas. De barco, ZH percorreu ruas debaixo d'água e residências totalmente danificadas. Ainda não há previsão para o escoamento definitivo da água.
Para amenizar o drama das famílias desabrigadas ou desalojadas na difícil espera e torcida por sol e tempo firme, os próprios moradores tomam a iniciativa e formam correntes de solidariedade nos bairros, independentemente da ação do Poder Público. O empresário Edson Luiz da Luz Belo, 50 anos, coloca vizinhos para dentro de casa pela quarta vez e abre mão de momentos com seus próprios parentes para auxiliar. Na noite de quinta-feira, eram 13 novos moradores na garagem.
- Hoje eu disse para o meu pai que não daria para eu estar com ele na véspera do Natal. O pessoal aqui precisava de mim, e meu pai acabou vindo para cá também. Não é justo a gente comemorar, comer peru, e um monte de gente se satisfazer com o que dão para elas. No final, se torna até melhor depois que tudo passa, estou fazendo a minha parte - conta.
- São muitas gerações que se conhecem. Eu me sinto feliz de estar ajudando e ser ajudado, mesmo com essa situação toda. Não vou dizer que estou bem feliz, e sim contente porque temos vida e saúde - reflete Carlos Biraí Aguirre, 55 anos, acolhido pelo empresário.
Ao todo, nove pessoas ficaram feridas em Quaraí devido às fortes chuvas, nenhuma com gravidade. Apenas em quatro dias, entre 19 e 23 de dezembro, as precipitações chegaram a 400 milímetros. A Ponte Internacional da Concórdia, que liga o município à cidade uruguaia de Artigas, ficou fechada durante 22 horas, pois havia riscos de fissuras e rachaduras.
* Zero Hora