Personagens desta reportagem, Maria de Lurdes dos Santos Souza e Ketlin Stefani Dias Quadros comprarão e guardarão a edição de hoje do Diário Gaúcho, mas pouco farão além de admirar as suas fotografias. Maria e Ketlin são analfabetas, e fazem parte do grupo de 13,2 milhões de brasileiros _ destes, 408 mil gaúchos _ nesta situação, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, divulgada pelo IBGE.
O estudo apontou um acréscimo de 10 mil analfabetos no Rio Grande do Sul com mais de 15 anos entre 2013 e 2014 _ a taxa variou de 4,4% para 4,5%. O Estado caiu da quarta para a sexta colocação entre as menores taxas do país. Perdeu espaço para o Amapá, no Norte do País, que conseguiu reduzir, em um ano, a taxa de 6% para 4,1%. Isso é o dobro do que foi conquistado pelos gaúchos em uma década: entre 2004 e 2014, o Rio Grande do Sul diminuiu a taxa de analfabetismo em apenas 1%.
Entre os motivos, a dificuldade de atrair os mais velhos para a escola. Pesquisadora do IBGE da área de trabalho e rendimento, Adriana Beringuy lembra que a estrutura etária dos Estados da Região Sul é mais envelhecida e que a redução do analfabetismo não tem ocorrido predominantemente nessa população. O contingente de analfabetos é composto, principalmente, por pessoas mais velhas, que não tiveram escolaridade no passado.
Os desafios de Maria de Lurdes
A dona de casa Maria de Lurdes dos Santos Souza, 55 anos, moradora do Bairro Santa Cecília, em Viamão, começou ainda criança a cuidar dos 11 irmãos. Aos 14 anos, já trabalhava em casas de família. Tanta labuta a afastou das salas de aula.
O Diário Gaúcho deu um passeio com Maria para mostrar as limitações de quem vive sem entender a lógica das letras do alfabeto.
Confusão com letras e números
Para comprar carne, só com ajuda do atendente
Maria passa pelos cartazes de promoção em frente ao supermercado sem nem mover o rosto. Entra e já vai procurando quem sempre a ajuda a escolher a carne na bandeja. Para se sentir mais segura, pede auxílio para as mesmas pessoas, até porque os números também são um universo pouco explorado por ela.
Maria diz que, nesses casos, consegue identificar só valores "pequenos" com apenas um número antes da vírgula. Como a carne é mais cara, precisa de auxílio.
- Quero uma agulha que não seja muito dura - diz ao atendente.
A embalagem facilita a identificação do pão que compra para o marido. A fruteira é o setor no qual mais se sente à vontade:
- Rúcula, conheço pela planta e porque começa com R e U. Meu neto que me ensinou a relacionar essas duas letras.
Perdida no posto
Com consulta marcada para dali a dois dias, Maria foi buscar um raio-X no Pronto-Atendimento de Viamão. No prédio cheio de palavras escritas nas portas, ela admitiu o quanto é estranho não saber para onde ir:
- É confuso não entender o que está escrito.
O exame ainda não estava pronto, e a atendente pediu para ela deixar dois telefones de contato. Sem saber como procurar na agenda o nome do filho, alcançou para a atendente o celular.
Sabonete de cachorro
A maior dificuldade está no corredor dos produtos de higiene e limpeza. É o tormento de Maria. Por não saber diferenciar produtos, já comprou condicionador ao invés de xampu. Já levou para casa sabonete para cachorro ao supor que eram para humanos. Só garante que nunca esquece da embalagem do seu sabão em pó favorito:
- Não sei ver estes preços. Não consigo relacionar preços com os produtos. Deixo para comprar quando faço rancho, aí uma das minhas noras me acompanha.
Decoreba para pegar ônibus
Na parada, o medo de fazer a viagem errada
Ao esperar a linha Santa Cecília na Parada 44, Maria admite que o tempo e algumas confusões a forçaram a decorar as palavras Viamão e Bento _ das linhas que passam pela Avenida Bento Gonçalves, em Porto Alegre. Diz ela que "tem muita coisa que se aprende decorando".
Ao longo dos 30 anos em que trabalhou como doméstica, enfrentou alguns apertos por não saber ler. Certa vez, pegou o ônibus que passa pela Bento ao invés da linha que vai até a Avenida Protásio Alves, na Capital:
- Por medo, não perguntei para ninguém onde eu poderia descer. Desci em qualquer lugar e fui a pé até a casa onde trabalhava na época, no Bairro Petrópolis. Cheguei mais de duas horas atrasada - lembra.
Com pouca confiança em si, Maria acredita que já é tarde demais para aprender a ler, mas reconhece que sua vida seria outra se entendesse as palavras:
- Sou uma pessoa que não visita outros lugares e mal conhece a Capital. Deus o livre eu ir a Porto Alegre sozinha.
Sem dinheiro
Caixa eletrônico? Sozinha, não
A confusão que Maria faz com dinheiro a faz acreditar que já foi lograda no comércio.
Antes de ir embora, pretendia sacar dinheiro no caixa 24 horas do supermercado. Como nenhuma das duas atendentes que sempre a ajudam na tarefa estava por lá, deixou para voltar depois.
- Volto com meu filho mais tarde. Sem elas, não saco nada, tenho medo.
"Tu te sentes como uma criança"
Ketlin só sabe escrever o próprio nome
Ketlin Stefani Dias Quadros, 21 anos, tem a letra K tatuada na mão direita. A letra é a inicial também do nome de dois dos três filhos da jovem _ são eles Kevelyn, quatro anos, Kauê, três anos, e Thaylor, um ano _ que mora no Bairro Restinga, na Zona Sul da Capital. Mas a intimidade de Ketlin com o alfabeto para por aí.
Diferentemente dos jovens da sua idade, ela não tem perfil em redes sociais nem fica trocando mensagens pelo celular. Analfabeta, cursou apenas até a segunda série em uma infância tumultuada. Trocava de bairro com uma frequência que dificultava sua permanência no colégio.
- Eu sempre quis estudar, desde criança via outras crianças com mochila e caderno e também queria ter aquilo - reconhece.
Constrangimento
O constrangimento por não saber ler a persegue o tempo todo. No supermercado, conta que as pessoas não entendem quando uma guria que sequer usa óculos precisa de ajuda para "enxergar" o que está nas etiquetas.
- As pessoas ficam me olhando com cara de deboche e perguntando porque eu estou pedindo ajuda. Quando meu filho Kauê esteve internado no Hospital da Puc, eu não saía do quarto porque tinha medo de me perder e de não saber voltar - relata.
A limitação se torna uma barreira até nas atividades mais banais. Na farmácia, não vai sem o marido, o pedreiro André, 30 anos.
Já trabalhou um mês inteiro fazendo limpeza e foi lograda ao receber apenas R$ 50. Sem ter noção do dinheiro, achou que tinha recebido o valor referente ao salário de um mês:
- Tu te sentes como uma criança.
Porém, para Ketlin, 2016 será um ano de mudanças. Como já deixou de amamentar o filho mais novo, pretende se inscrever na Educação de Jovens e Adultos (Eja) e estudar à noite, enquanto o marido fica com os filhos.
- Meu sonho é poder estudar e ser médica, para ajudar quem precisa do Sus - afirma.
Evasão é o maior entrave
O Rio Grande do Sul tem 589 escolas estaduais que oferecem Educação para Jovens e Adultos (Eja), das quais 94 estão localizadas na Capital. O Estado também conta com a ajuda de programas federais, como Brasil Alfabetizado, para tentar frear o analfabetismo. O programa apoia de forma técnica e financeira os projetos de alfabetização de jovens, adultos e idosos de Estados e municípios.
Para a coordenadora do Ensino Médio da Secretaria Estadual de Educação, Maria José Fink, o mais importante é garantir a formação continuada dos professores para que eles consigam fazer com que o aluno perceba a importância da alfabetização.
Ela reforça que qualquer aluno pode iniciar a alfabetização do zero nas escolas que possuem Eja. Dependendo da estrutura da escola, as turmas reúnem alunos em diversos níveis. O maior entrave, segundo ela, é a alta evasão:
- Muitos são os que fazem matrícula e depois não aparecem. Muitos alunos têm que trabalhar e não dão conta de estudar ou não têm incentivo da família _ reconhece.