Bem mais magro, pálido e com visual abatido, Elissandro Spohr, o Kiko, pivô da maior tragédia da história gaúcha - a morte de 242 jovens num incêndio na boate Kiss, - depôs nesta terça-feira pela primeira vez ao Judiciário. Ele era um dos donos da danceteria e foi interrogado em Santa Maria, onde ficava seu estabelecimento. De camisa social para fora das calças jeans, tênis, olheiras e barba por fazer, ele avisou logo nas primeiras palavras: "Vou falar tudo".
E cumpriu a promessa. Falou durante três horas diretas e só fez pausa para ir uma vez ao banheiro, tomar uma taça de café preto e muita água. Foram três copos de mineral. Ele pediu compreensão aos pais das vítimas - dezenas deles lotavam o salão do júri, com camisetas decoradas com fotos dos filhos mortos. E desmoronou quando o juiz Ulysses Louzada lhe perguntou: o que motivou o fogo?
Ao fazer isso, o magistrado que preside o interrogatório ecoou a maior angústia dos familiares dos 242 mortos na boate Kiss. Fez sua a voz deles. Aí Kiko respondeu em meio a uma crise de choro:
- O que causou o fogo foi a brincadeira errada. Foi um erro o Marcelo (de Jesus dos Santos, vocalista de uma banda) ter usado o artefato luminoso que causou o incêndio. Mas ele não queria matar ninguém. Com certeza, não. Ninguém queria - disse Kiko, em lágrimas.
Eram 15h15min de uma longa e abafada tarde no fórum santa-mariense. O choro de Kiko provocou murmúrios entre os familiares de vítimas.
- Não aguento mais ouvir tanta mentira - disse uma mulher, parente de jovem morto no incêndio.
Disposto a convencer a plateia, Kiko continuou:
- Eu não queria que isso acontecesse. Nunca imaginei que fosse acontecer. Que uma banda fosse acender o artefato e o incêndio acontecer. Eu não fui lá pular com o negócio na mão. Posso ter parcela de culpa, tudo bem. Mas não sou assassino. Talvez eu devesse ter visto algo que não vi. Eu quis fazer o melhor - analisou.
Kiko aproveitou para alfinetar as autoridades, entre elas o Ministério Público, a prefeitura e bombeiros, que permitiram que a boate estivesse funcionando.
- Tudo que foi pedido eu fiz. Me deram documentação em 2009, me deram em 2011. Vão dizer que comprei, que corrompi? Não tinha rolo com ninguém. É como se eu tivesse construído a boate e me concedido os alvarás. Não, me deram permissão. Fiscalizaram. Tava tudo OK e aí aconteceu o acidente. Acabou que deu no que deu. Só eu sento aqui para explicar? É complicado. Junto comigo também deveria ter bem mais gente dando explicação. O senhor não deveria ter aceitado denúncia só contra quatro bocós - disse Kiko ao juiz.
Outros dois réus por homicídio, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão (integrantes da banda Gurizada Fandangueira), acompanharam a sessão. Mauro Hoffmann, sócio de Kiko e também réu, não foi.
Detalhes da rotina
Foram horas em que Kiko relatou toda sua vida, desde a infância, onde começou a gostar de música, até a adolescência em Santa Maria, onde começou a tocar guitarra em boates. Ele diz que tocava na Kiss e, após algum tempo, o dono da danceteria, Tiago Mutti, lhe ofereceu o estabelecimento para venda. Kiko detalhou a ginástica para conseguir dinheiro.
- Pro Mutti, dei um carro e mais outro. Uns R$ 190 mil em duas parcelas. Me envolvi por gostar de tocar, mas não deixava de ser negócio. Chegou um ponto em que saí fora, mas voltei. Passei pro nome da minha mãe. Depois o Mauro Hoffmann adquiriu 50% da boate. Deu entrada de R$ 200 mil, e o resto foi parcelado, o total era R$ 500 mil. Nós éramos concorrentes, mas ele virou meu amigo.
Questionado pelo juiz, Kiko negou que fizesse ou estimulasse shows pirotécnicos como os que causaram o incêndio. Ele admite que uma vez teve vídeo gravado com fogos artísticos na Kiss. Ele diz que não sabe se era fogo quente ou frio, se era perigoso.
- Eu não quero ser hipócrita, mas eu nunca vi. Minha banda não usava. Se outros usaram, eu estava fora. Quero que perguntem para todas se elas se eu disse a alguma delas: façam show pirotécnico, acho bonito. Nunca falei isso! Juro pela minha mãe.
A sociedade com Mauro
Kiko também esmiuçou sua relação com o sócio Mauro Hoffmann, que aparecia na boate apenas nas quintas-feiras. Ele disse que o lucro líquido mensal era de cerca de R$ 15 mil para ele (Kiko) e R$ 15 mil para Mauro. O lucro bruto era de R$ 18 mil a R$ 20 mil por noite.
- Mauro era meu sócio, mas quem fazia as coisas era eu. Ele cuidava da boate Absinto, eu cuidava da Kiss. E assim foi. A Kiss não era essa bagunça que falam. Tinha responsável pelo bar, pelo financeiro, por tudo. Contabilidade semanal. Falam que o Mauro fez obras. Quem conhece ele sabe que não é de carregar saco em obra - definiu Kiko.
O réu também assegura que todas as obras feitas na boate - algumas apontadas, no processo, como responsáveis pela morte das pessoas - foram autorizadas pelo Ministério Público Estadual (MPE).
- Teve reformas. Constantemente tinha que arrumar alguma coisa. Melhorias. Mas a reforma estrutural foi via Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo MP. Fiz uma saída para fumar. As janelas já tinham sido fechadas com gesso e lã de vidro, para diminuir barulho. Foi acerto do Alexandre (antigo dono da Kiss) com o promotor de Justiça.
A noite do incêndio
Kiko afirma que a Kiss não costumava superlotar, porque os donos regulavam para que os frequentadores tivessem um mínimo de conforto dentro. Ele considera que a noite do incêndio não foi das com maior público. Ele diz que não viu o fogo começar.
- No início pensei que era briga, eu tinha ido apartar uma lá fora. Quando eu cheguei de volta, na porta, vi o tufão de fumaça. Eu olhei pro palco e os guris já estavam em função de extintor. Vi que era coisa séria. Os seguranças não seguraram o pessoal, não tinha como segurar. Ninguém seguraria - concluiu.
Frases do réu:
"Conseguir licença para funcionar era um horror, por causa da burocracia"
"Quando comecei a fazer festas, os vizinhos nem me cumprimentavam, me odiavam"
"Se lá atrás as autoridades tivessem fechado a Kiss, eu, 'bocaberta', não teria comprado a boate"
"Os guarda-corpos eram para evitar que alguém entrasse armado e matasse alguém, com uma faca e perseguisse alguém. Não é como estão dizendo, para evitar saída de quem não pagasse. É questão de segurança. Banco não tem porta giratória?"
"Quem sabe, o que fiz não foi suficiente. Achava que era seguro. Tinha ok de prefeitura, Ministério Público, Bombeiros"
"Tinha saído para resolver um problema. Entrei no prédio e alguém gritou Fogo!, Fogo! Olhei para palco e já estava uma função ali. Muita gente começou a vir e era uma barulheira. Saí pela porta dos fumantes"
"Ninguém gritou na hora do incêndio: abre a porta. Foi eu quem abriu a primeira porta do fumódromo"
"Acho que se bombeiros tivessem mais equipamentos, poderiam ter salvado mais pessoas"
"Se eu tenho que responder pelo que aconteceu, outros também, até antigos donos. Não é justo só eu"
"Não queria que acontecesse, posso ter culpa, mas não sou assassino. Quem sabia que essa espuma ia dar esse problema? Onde diz que é proibido colocar espuma? Não sabia que alguém iria lá e botar fogo"
Depoimento de Kiko prossegue em Santa Maria. ACOMPANHE:
* Zero Hora e Diário de Santa Maria