Na segunda-feira, uma semana depois da morte de Dóris Terra Silva, os pais da estudante retornaram ao apartamento onde moravam com a filha, no bairro Bom Fim, em Porto Alegre. Pegariam algumas mudas de roupas limpas e voltariam para São Francisco de Paula (cidade onde a família tem se mantido reunida desde a perda e, também, onde três facadas desferidas por um assaltante tiraram a vida da jovem de 21 anos, em 20 de dezembro).
Ex-prefeito de São Francisco de Paula e atual subsecretário do Parque de Exposições Assis Brasil, o pai de Dóris, Sérgio Bandoca Foscarini da Silva, conversou com ZH no salão de festas do edifício. Em meia hora, chorou seis vezes.
- Entreguei nas mãos de Deus e da Justiça - disse.
Bandoca preferiu que a entrevista não fosse concedida no apartamento da família, no 6º andar, porque a mulher lhe aguardava no local. Ao final da conversa, quis subir na residência para mostrar a última foto que havia tirado com Dóris: pai e filha se abraçavam na imagem registrada em 2 de dezembro, dia em que a estudante recebera a carteira de estagiária da Ordem dos Advogados do Brasil no Estado (OAB/RS).
O quarto de Dóris permanece intacto: igual à última vez em que a jovem esteve nele - em 18 de dezembro, antes de viajar com a família para São Francisco de Paula para passar o final de semana na companhia dos pais, das duas irmãs mais velhas e dos dois sobrinhos.
Ao entrar no cômodo, Bandoca chorou mais uma vez.
Como havia sido o domingo da família antes do sumiço da Dóris?
Quase todo final de semana, deslocávamos-nos para São Chico (São Francisco de Paula). Naquela sexta-feira, fomos às 19h30min, quando ela (Dóris) saiu do serviço. Chegamos em São Chico à noite. Ela estava envolvida com o sobrinho de quatro anos e com a mãe, não saía de casa. Era muito difícil ela sair de casa em São Chico. No domingo, fui para fora cedo (a família tem propriedade rural na cidade), voltei e almoçamos. Ao meio-dia, comentei que estava com afta. Ela falou que também estava e que iria comprar um remédio. Dei dinheiro para ela, e voltei para fora. Às 14h30min, ela saiu para ir à farmácia. Mas, como ela não ficava uma hora longe de casa sem dar notícia, quando eram 16h, minha filha mais velha disse à minha esposa que a Dóris estava demorando. Esperaram mais um pouquinho, ligaram, ela não atendeu, mas pensaram que ela pudesse ter encontrado uma colega e ficado conversando. Quando era 17h e pouquinho, me ligaram. Cheguei em casa, liguei, ela não atendeu. Mandamos mensagem, ela não respondeu. Naquele momento, disse para a minha filha mais velha: "Te preocupa porque algo errado aconteceu". Nós mobilizamos São Chico. Tinham carros correndo por tudo. Só que tudo que fizemos foi por terra. Ele (Luis Paulo da Silva Nunes, 31 anos, autor confesso do crime) matou ela em questão de meia hora. Ele saiu de São Chico, andou quatro quilômetros e a matou covardemente com três facadas.
Ficamos girando, rezando, ligando. No fim da tarde, localizaram o carro e o celular dela. Pedi para o pessoal ir até Canoas (cidade onde o veículo que Dóris dirigia foi encontrado). Uns iam por uma estrada, outros pela outra, e eu sempre imaginando a minha filha viva, que tivesse sido largada numa beira de estrada. Pensei que ela estivesse apavorada, numa beira de estrada. Os amigos de Esteio, de Canoas, uns voltando, outros vindo, e nada. Fiquei sabendo (da morte) já era meia-noite passada.
Como reagiu?
Pelas 23h, o Corpo de Bombeiros, talvez por ter conhecimento de onde fazem essas "desovas", como dizem, foram lá e encontraram (o corpo da jovem). Mas só foram me contar depois da meia-noite. Naquele momento, não sei se a força dela me ajudou para ter coragem. Tenho outras duas filhas e dois netos. Sempre fui muito católico, sempre acreditei que a gente nasce e tem uma hora de morrer. Tem dia, hora e maneira de morrer. Isso foi me dando um pouco de tranquilidade. Só que, muitas vezes, o desespero batia. Quando falavam o nome da minha filha, quando eu via uma fotografia.
Por que o senhor diz que teve certeza de que algo de errado havia acontecido?
Eu conhecia a minha filha havia 21 anos. Ela saía de casa pela manhã para ir ao serviço ou à faculdade, chegava no local e mandava mensagem. Ela saía, ela ligava. Ela almoçava, saía do serviço e ligava. A prova disso é que, logo depois que aconteceram os fatos, saíram comentários de que podia haver motivação política ou de namorados. E, na perícia no telefone dela, nos últimos dias, eram só telefonemas e mensagens para o pai, para a mãe, para as irmãs, para os cunhados. Ela vivia a família. Digo à minha esposa que temos de ter coragem, porque ela viveu 21 anos para a família. Ela se dedicou, apegou-se. Costumo levantar muito cedo. Para ir a Esteio e não pegar trânsito, saio às 6h30min, 7h, toda a manhã. Saía do meu quarto, ela deixava sempre o quarto dela de porta aberta, e parece que ela acordava para me dizer: "Tchau, paizinho". Toda a manhã.
Foto: Diego Vara
Como o senhor recebeu a notícia de que a Dóris havia sido encontrada sem vida?
Na minha casa, depois das 19h, eu não sabia mais quem chegava e quem saía. Era muita gente. Porque a amizade que a gente construiu na vida foi muito grande. Aí, vi quando as pessoas começaram a sair, à noite, quase 1h da manhã. Fui notando que não queriam me dizer. Daqui a pouco cheguei para alguém e disse: "Olha, vocês têm de me dizer". Queriam me dar um remédio. Então perguntei e me contaram, infelizmente, que ela havia sido morta. Me deu aquele pânico de 10 minutos, mas, ao mesmo tempo, parece que uma luz brilhou e me disse: "Calma, tu tens duas filhas, dois netos e uma esposa". E vou te dizer mais: se tu chegares numa família estruturada, com as minhas filhas, netos e esposa, tu podes levantar as mãos pro céu e rezar para Deus. Esse presente eu tive de Deus. Eu tive três filhas: uma formada em Direito, uma formada em Farmácia e essa que estava fazendo os seus convites para a formatura no fim de ano (de 2016). Deus me deu o primeiro presente: um neto. Depois, me deu o segundo presente: outro neto. Isso me conforta um pouco. Acreditando em Deus, acho que ela veio ao mundo para viver como viveu. Nos dias de hoje, com 21 anos de idade, não saía de casa, não ia a festas, não bebia. E tinha outra. Ela me pediu, há pouco tempo, uma passagem para o Rio de Janeiro para passar o Carnaval com as colegas. Nós compramos a passagem e, 15 dias depois, ela disse: "Pai, eu não vou. Sozinha não vou". O foco dela era estar ao lado da família, era se formar, fazer um concurso público. Esse era o pensamento dela.
Como a sua família passou o Natal?
Minha segunda filha faz aniversário em 24 de dezembro. Tudo que tínhamos pronto, era a Dóris que tinha organizado. O amigo secreto, os presentes para os dois sobrinhos. Ela era madrinha dos dois, uma apaixonada, brincava, não tinha vontade de sair de casa em São Chico. Saía só se a mãe insistisse muito. É tudo muito difícil. Me perguntam se tenho ódio de quem fez. Ódio não vai trazer a minha filha de volta. Não vai. Se eu perdoo? Não perdoo, porque quem perdoa é Deus. O que quero? Justiça. Entreguei nas mãos de Deus e da Justiça e estou com amigos, com orações, junto com a minha família, que é muito unida, de muita coragem. A cada dia, a dor aumenta, a saudade aumenta e o desespero aumenta. Desde o dia em que aconteceu, não dormimos mais. Até hoje, minha esposa ainda não mexeu no quatro dela, nem de São Chico, nem de Porto Alegre. Para nós, ela era uma guriazinha. Minha coragem está vindo dela, pode ter certeza.
O caso chocou não apenas pela morte da Dóris, mas pela forma como aconteceu.
Tinha duas preocupações. Primeiro: não encontrarem a minha filha, como muitos pais passam. Segundo: minha filha era muito carente, me preocupava que um marginal desses tivesse amarrado a minha filha, estuprado e atirado num penhasco, à noite. Isso me deixava desatinado. Quando me deram a notícia, parecia que Deus havia me dado um alívio. Sabia onde estava a minha filha, porque, desde as 18h30min da tarde, 19h, parece que já tinha alguém, na minha cabeça, dizendo o que havia acontecido. Pela filha que tinha, pela maneira como ela agia quando saía, algo de errado sabia que tinha, mas ainda com a esperança de ela estar viva. Amarrada ou não amarrada, solta ou não. O cara saiu dali pronto para matar. No depoimento, disse que a guria deu um tapa. Não acredito que uma pessoa dê três facadas numa guriazinha por causa de um tapa no rosto. Não acredito que ele esteja arrependido se ele pegou o cartão dela (ela ganhava R$ 750 de estágio, tinha R$ 1,5 mil na conta), passou em três cidades diferentes para sacar. Então não existe arrependimento. A pessoa faz isso e atira uma guriazinha morta no meio do mato, passa em Sapiranga, passa em Esteio, passa em Canoas, retira todo o dinheiro que tem. Não há sentimento e não está arrependido.
Se pudesse dizer algo ao autor do crime, o que o senhor falaria?
Nada. Não quero conhecê-lo e não quero falar. É como disse desde o primeiro momento: entreguei nas mãos de Deus e da Justiça. Em São Chico, a revolta é muito grande. O povo clamava para que ele fosse preso em São Chico. Levaram ele para outra localidade. Não quero ler o depoimento, não quero vê-lo, não quero dizer uma palavra que trate a respeito dessa figura.
Como o senhor acredita que será a vida da sua família, daqui para a frente, sem a Dóris?
Acho que Deus faz as coisas muito certas. Ele primeiro trouxe esse neto de 20 dias para, depois, levar a minha filha. Será uma situação difícil, mas temos de ter muita coragem. Muita coragem. Porque, às vezes, a gente perde. Mas vamos acreditar em Deus.
O senhor disse que entregou "nas mãos da Justiça". Para o senhor, como a justiça seria, de fato, feita?
Acho que uma pessoa que comete um crime brutal desses não pode mais sair da cadeia. Como ele fez friamente, se ficou duas horas em um banco, ao lado do supermercado esperando uma vítima. Não era para ser ela. Mas ele esperou duas horas até que chegasse uma pessoa que ele pudesse pegar, segurar. Por ali passaram diversas pessoas, talvez com um físico maior. Ele esperou ela. Tanto é que, pelo relato que a delegada me disse, ele embarcou no carro e sentou no banco de trás. Ela passou por três preferenciais na avenida, a guria dirigindo, ele no banco de trás. A guria dirigiu quatro quilômetros. Mas disseram que, quando ele mandou ela descer, pediu dinheiro, cartão, ela deu um tapa no pescoço dele e ele a matou. Deu a primeira facada e ela caiu, depois deus mais duas. Não dá para acreditar que essa pessoa não estivesse pronta para matar. Tenho certeza que ela não disse uma palavra para ele. Só o tempo vai mostrar a quantidade de ódio que o marginal tinha. Ele não podia ter ódio da minha filha, porque não a conhecia. Eu não tenho ódio. A Justiça, como eu acredito, não vai soltar para que não tenha outro pai, amanhã ou depois, passando pelo que a minha família e eu estamos passando.
Foto: Diego Vara
O senhor foi prefeito de São Francisco de Paula, está há 40 anos atuando na vida política e sabe que a segurança pública costuma ser uma das cobranças da população aos governos. Acredita que o latrocínio que vitimou a Dóris seja um reflexo da insegurança do Estado?
Acho que o reflexo maior é na questão das drogas. Se conseguíssemos eliminar parte das drogas, teríamos mais segurança. A droga é que está fazendo a pessoa agir, como age hoje, de sangue frio. Não está fácil a segurança, a gente sabe, está difícil, mas não queria, num momento desses, de tanta dor, criticar ninguém. Nem municipal, nem estadual, nem federal. Não. Tenho vida pública há muitos anos, sei que a gente tenta fazer de tudo na vida pública, mas não consegue fazer o que a gente pensa. Por isso, não tenho nem ódio da figura que fez isso. Quero justiça. E por isso vou bater até os últimos dias da minha vida. Por justiça.
Se o senhor pudesse passar uma mensagem para a Dóris neste momento, o que falaria a ela?
Tenho certeza que ela está bem. Pela maneira como viveu esses 21 anos, pelo carinho que dedicou a todas as pessoas com quem conviveu. Era uma pessoa inteligentíssima. Terminava a faculdade e estava de férias na frente dos outros. Não teve um ano que essa guria tivesse problema em colégio. Desde o colégio Rosário foi para a PUCRS. Toda a vida tranquila. A Dóris, hoje, é mais um anjo que está me ajudando lá em cima. Não é por ser a minha filha, mas a Dóris foi o que foi, o que fez, os seus 21 anos, marcaram que ela tinha uma vida curta, que ela procurou viver os seus 21 anos, ela procurou o carinho dos amigos, e talvez, isso, a gente não consiga entender, mas ela tinha com ela que ela duraria muito pouco nessa vida. E aí a vida dela foi essa.
* Zero Hora