A jornalista, escritora e tradutora Rosa Freire DAguiar acaba de traduzir para o português o romance Submissão, de Michel Houellebecq, lançado no mesmo dia do ataque à revista Charlie Hebdo, em 7 de janeiro deste ano. A ação do romance se passa em 2022, numa França governada por um presidente muçulmano. Radicada na capital francesa desde os anos 1970, Rosa lamenta que o presidente François Hollande não tenha um porta-voz da comunidade muçulmana como interlocutor, elogia o ministro do Interior, Bernard Cazeneuve, e recorda que o país não fecha as fronteiras desde a Guerra da Argélia, entre os anos 1950 e 1960. Na madrugada deste sábado, enquanto acompanhava pela TV o noticiário sobre os ataques em Paris, Rosa conversou por telefone com Zero Hora.
Ao traduzir Submissão, a senhora cogitou alguma vez testemunhar algo semelhante aos acontecimentos de sexta-feira?
Não. O livro escrito por Houellebecq é uma ficção política que mostra um muçulmano moderado chegando ao poder pela via democrática, do voto. Não há violência, diferentemente do que ocorreu na sexta­-feira. Aliás, seria muito positivo se a França tivesse um partido muçulmano. Seria quase uma boa ideia. Um dos problemas sentidos durante a crise de Charlie Hebdo, em janeiro, é justamente a ausência de um interlocutor que fale pelos muçulmanos. Falta um Papa muçulmano. Por acaso, moro no 5º distrito, perto da Grande Mesquita de Paris. Depois do ataque a Charlie, o emir repudiou a violência, mas o problema é que a comunidade não se sente representada por ele. A questão não é o emir ser moderado ou não. A mesquita foi construída como uma concessão nos tempos do colonialismo na Argélia. Os que não têm relação com a presença francesa na Argélia não se sentem representados por essa mesquita.
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A inexistência de fortes organizações muçulmanas na França não está mais associada à história francesa do que aos muçulmanos?
Sim, a integração não é absoluta. A França adotou o modelo da integração do migrante. Nos modelos britânico e americano, não se tenta integrar o estrangeiro, e sim promover o multiculturalismo. Isso possibilita o surgimento de guetos. Em Londres, você tem bairros indianos, bengalis, egípcios. Nos Estados Unidos, há colônias grega, armênia e assim por diante. Particularmente, prefiro e me sinto mais identificada com o modelo francês. A escola pública francesa segue o preceito iluminista: ao entrar, você tem de deixar de lado a cruz, o kippah (solidéu judaico) e o chador (véu islâmico). Ocorre que o modelo francês não funciona mais.
Por quê?
Porque há uma nova necessidade de afirmação de identidade. Veja, por exemplo, o 5º distrito, onde moro. Ele não é um bairro especificamente coisa nenhuma: nem judaico, nem muçulmano, nem latino. Na minha rua, que é quase laica, há três restaurantezinhos com tabuletas nas quais se informa que a carne servida é halal (preparada segundo os preceitos islâmicos). Ao lado da minha casa, há um restaurante libanês, e agora apareceu a tabuleta halal. Nunca foi preciso, mas agora, certamente, alguém pediu. Não fui eu, nem o marroquino que vive há 50 anos no apartamento ao lado. E, claro, tem também a França bombardeando a Síria.
Não há uma relação evidente entre a política da França para países como Síria, Líbia, Mali e Iraque e os atentados?
É muito complicado. A França está bombardeando a Síria? Está. Mas outros países também estão. É claro que é mais fácil atacar a França do que os Estados Unidos. Na semana passada, pegaram um rapaz francês de 20 e poucos anos. Ele queria ir para a Síria, não conseguiu e ficaram de olho nele. Conseguiram rastreá-lo quando comprou armas e uma touca ninja pela internet. Mas era um garoto meio bobo: confessou que ia atacar uma base naval em Toulon. Agora, vamos supor que a polícia desconfie de mim. Se isso ocorre, há pelo menos outras 10 pessoas que têm de ser vigiadas. No final de contas, é uma galáxia que deve ser vigiada. Isso é impossível, a menos que você se torne uma sociedade policial.
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O estado de emergência anunciado pelo governo dá conta desse tipo de ameaça?
O estado de emergência dá à polícia liberdade para fechar certos lugares. Se eles desconfiassem que haveria ataque ao Stade de France, poderiam fechá-lo. O problema é que você tem de fazer isso num Estado de direito. Bernard Cazeneuve (ministro do Interior) é muito bom, mas está entre a cruz e a espada. As fronteiras seriam fechadas uma semana antes da Conferência de Mudança Climática, em Paris, e cinco dias depois. Mas colocariam em prática um controle aleatório, nada mais. O fechamento puro e simples das fronteiras é uma medida dura. Hollande (o presidente François Hollande) deve ter falado com Merkel (Angela Merkel, chanceler da Alemanha). Você não pode desrespeitar o Acordo de Shengen (acerto europeu de abertura de fronteiras e livre circulação de pessoas).
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Em que ocasiões houve estado de emergência e fechamento de fronteiras?
O último estado de urgência foi nos anos 1960, durante a Guerra da Argélia, mas o país estava em guerra. É um momento muito duro. Graças a Deus, temos um ministro do Interior (Cazeneuve) muito correto e muito firme.