Uma lufada de diálogo e respeito às diferenças. Essa é a mensagem que o argentino Jorge Mario Bergoglio passa para um mundo que vê terroristas usando dos meios mais cruéis em nome de suposta religiosidade. Bergoglio se tornou Papa e assumiu o nome de Francisco, com todo o significado de generosidade nele contido.
Adequado à evolução dos costumes e à necessidade de enfrentar a incompreensão, ele se notabilizou por abordar tabus e estender a mão ao diferente. Uma obra que traduz isso é o livro Sobre o Céu e a Terra (Paralela, 192 páginas), escrito por Bergoglio e pelo grande amigo e parceiro de reflexões, o rabino Abraham Skorka, reitor do Seminário Rabínico Latino-Americano, em Buenos Aires. Dessa escola se formam líderes judaicos para predicar em cidades como Porto Alegre.
No dia 19, um fim de tarde chuvoso, Zero Hora esteve no seminário e conversou com Skorka. Com voz suave, ele abordou o significado da amizade ecumênica que mantém com um dos líderes mundiais mais respeitados. No mesmo momento, Francisco se preparava para viajar até a África, com sua mensagem de paz.
Skorka não é só coautor de livro com o Papa. Também foi escolhido por Bergoglio para prefaciar sua biografia. A amizade se materializa em diálogos frequentes, em que ambos se mostram preocupados com atentados como o de Paris no dia 13. Há, ainda, as brincadeiras sobre futebol (Francisco torce para o San Lorenzo, e Skorka, para o River Plate) e situações curiosas. Um dia depois de Bergoglio ter sido escolhido Papa, o celular de Skorka tocou.
- Alô, rabino Abraham! Estou no Vaticano e não me deixam voltar! - riu o então já papa, do alto da afinidade espiritual e intelectual de duas décadas.
Francisco diz que "dentro do cristão há um judeu".
- O fundamentalista não sabe o que é diálogo. Tem coração fechado a tudo que seja confronto com outra posição. Temos, católicos e judeus, o mesmo sangue. Somos humanos filhos do mesmo pai. Vamos buscar caminhos de paz - disse certa vez Francisco.
Em um programa de TV do Vaticano, em um momento, Francisco afirmou, referindo-se ao extremismo:
- Cuidem dos seus filhos. Que cresçam com uma mentalidade aberta, aprendam a escutar, a dialogar. Fiquem atentos para perceber lavagens cerebrais.
Sobre Skorka, com quem também gravou 30 programas de TV, ele diz:
- Nossa amizade é um exemplo.
Em maio de 2014, Francisco, Skorka e o xeque Omar Abboud, também de Buenos Aires, visitaram Jerusalém e exibiram na prática o conteúdo de suas conversas. Skorka se emociona ao lembrar o abraço que os três se deram no Muro das Lamentações.
Em 2016, para marcar os 80 anos da sinagoga Sibra, Skorka virá a Porto Alegre, convidado pelo líder religioso Guershon Kwasniewski, seu ex-aluno. A data do evento ainda não está marcada.
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Entrevista com Abraham Skorka, reitor do Seminário Rabínico Latino-americano
O que representa para o senhor a amizade com o Papa?
A relação que se criou entre nós marcou profundamente nossas vidas. O livro que escrevemos foi traduzido para todos os idiomas europeus, coreano, chinês, hebraico. A mensagem que elaboramos juntos se expandiu como sonhamos. Não imaginávamos que se transformaria em realidade. É uma mensagem de paz, de entendimento, o paradigma de diálogo que quisemos apresentar com esse livro. Deus nos bendisse. Que sirvamos como fonte de inspiração.
O que une o senhor e Francisco?
Compartilhamos a concepção de que, nas ações dos homens, em especial quando são para elevar a espiritualidade e melhorar a condição humana, ali se encontra Deus. É um conceito que se manifesta na literatura rabínica e nos escritos cristãos. A relação homem-Deus, quando o homem busca o bom, o justo, o misericordioso. É o que posso dizer da nossa relação.
Como ocorreu a aproximação?
Descobrimos um ao outro, vimos que podemos achar, nos nossos caminhos de vida, sendas que sejam comuns. Foi desde a década de 1990, quando nos conhecemos na catedral e eu era convidado para o Te Deum (celebração religiosa), em 25 de maio e 9 de julho, para fazer o culto israelita no dia da pátria. Ali, a partir de meados da década de 1990, ainda antes de Bergoglio ser o arcebispo de Buenos Aires, ele me conhecia pelos textos que eu escrevia na imprensa, sempre falando sobre a necessidade de um diálogo claro, mais profundo. O diálogo não é só sentar e conversar. A partir desses artigos, ele me conheceu. Nossa aproximação ocorreu pelas piadas de futebol, porque aqui na Argentina, como no Brasil, somos aficionados.
Francisco é torcedor do San Lorenzo. E o senhor?
Sou River Plate. E foi assim, com as piadas sobre futebol, que as portas se abriram. Ele se tornou arcebispo de Buenos Aires e abriu as portas da catedral para mim. Começamos a pensar nos projetos de diálogos inter-religiosos, como uma matéria importante para melhorar as relações entre os humanos.
O judaísmo é monoteísta e prega o respeito ao outro. O cristianismo segue essa linha. Mas há diferenças. Como vocês preservam os pontos de encontro?
O relato que aparece nos Evangelhos é claro: perguntaram a Jesus qual é a síntese da Torá (livro sagrado do judaísmo), e ele disse "amará a teu próximo como a ti mesmo". Isso aparece no capítulo 19 do Levítico. O outro preceito é o monoteísmo. O eterno é uno, amarás ao eterno teu Deus com todo o teu coração, com todo o teu ser. Está no Deuteronômio. É uma definição que deram os sábios. Não fazer ao outro o que não queres que façam a ti é a formulação de Hillel, o sábio, como o resumo de toda a Torá quando uma pessoa não judia que queria ser judia pediu que ele fizesse uma definição rapidamente, parado com uma perna só. São formas diferentes de dizer, mais negativa ou positiva. Rabi Akiva (sábio da Judeia) dizia que o resumo da Torá é amarás a teu próximo como a ti mesmo. Grande parte da visão de Jesus é concomitante com diferentes escolas rabínicas do seu tempo. Claro que há coisas na história de Jesus das quais nós, como judeus, divergimos. E aí começou a divisão entre os judeus e os seguidores de Jesus, que depois se tornaram conhecidos como cristãos.
Essas diferenças em meio às convergências fazem o diálogo e a amizade de vocês mais especial?
A matriz, a primeira matriz, o judaís­mo do século 1, é a base. Eu e Bergoglio mantemos um diálogo tão especial porque a história de judeus e cristãos é cheia de desencontros muito dolorosos, mas é como se fossem desencontros entre dois irmãos. Houve desencontros, mas sabíamos que viemos de um mesmo ponto de partida. Um foi para um lado, e o outro foi para outro, paralelo. Repito: para outro lado paralelo. Tal como irmãos, há nisso uma relação de amor e ódio. Há vários casos assim, como Caim e Abel, Esaú e Jacó, José com os irmãos. A relação de irmandade, na história humana, é problemática. Esses desacertos, muito graves em vários casos do nosso passado, devem-se ao fato de que um olhava o outro e sabia que havia algo. O cristão olhava o judeu e dizia que tinha negado Jesus, mas sabia que Jesus era judeu. O judeu olhava o cristão e pensava: há valores que compartilhamos, mas há outros que não podemos aceitar, e sabemos que o início de vocês foi em nossa Jerusalém, a Jerusalém judaica do século 1. Essa relação, depois do Holocausto, demandou uma resposta, especialmente por parte do mundo europeu, porque foi lá que se deu o Holocausto. João XXIII, hoje em dia São João XXIII para os católicos e João, o Bom para nós, teve a valentia, a grandeza moral e a audácia espiritual de convocar o Concílio Vaticano II.
Qual o impacto disso?
Ele tocou no tema da relação judaico­católica. Recentemente, fez 50 anos que isso ocorreu. João XXIII morreu durante o concílio, e Paulo VI disse, no final, que o povo judeu jamais pode ser acusado de deicida, de ter matado Deus. Sabemos da importância e do impacto que isso teve. Bergoglio está entre os indivíduos que sabem criar uma mudança na História. Não só agora como Papa. Ele justamente chegou a Papa por ter essa atitude, não só com o judaísmo. Sabe recuperar a espiritualidade em tempos tão turbulentos.
Está nessa história toda o fundamento do encontro de vocês?
Frente a essa atitude de Bergoglio, ele me encontrou. E volto a dizer: Deus seguramente propiciou esse encontro. A partir daí, fizemos coisas juntos. Eu o convidei duas vezes à sinagoga para as orações de selichot, preparatórias para o Rosh Hashaná (ano novo judaico), e ele deu a mensagem dele, como arcebispo, para os judeus de Buenos Aires. Nessas noites de selichot, sempre o nosso diálogo era muito profundo.
Há algum episódio que o senhor guarde como emblema dessa amizade?
Não me lembro se na primeira ou na segunda vez em que ele esteve aqui (na sinagoga), eu lhe mostrei livros que sobreviveram, vieram da Alemanha, livros judaicos que vêm do final dos anos 1700, início dos anos 1800. Eu lhe disse: nesses livros, rezaram judeus desde 1800. Sobreviveram ao Holocausto e passaram de pais para filhos. Eu não quis enterrar esses livros, porque temos o costume de enterrar os livros em cemitérios quando suas letras não podem mais ser lidas. Eu queria que aqueles livros continuassem vivendo. E disse a Bergoglio que os livros ficariam com ele. Talvez estejam em Roma, com ele. Depois, quando dois jornalistas escreveram a biografia dele, perguntaram-lhe quem ele queria que escrevesse o prefácio. O livro é O Jesuíta. E ele disse que queria que fosse o rabino Skorka. Eu escrevi, claro. Fiquei emocionado. Ele pedia para o rabino escrever o prefácio da sua biografia. Isso foi enorme.
Vocês se comunicam com frequência, mesmo ele estando em Roma? Chegaram a conversar sobre fatos como o atentado terrorista em Paris?
Sim, com frequência. Falamos muitas vezes sobre a violência no mundo, não é a primeira vez. Quando fomos a Israel, eu ajudava a preparar o encontro entre o Papa e Shimon Peres (então presidente israelense). A ideia era transmitir uma mensagem de paz. Com o embaixador palestino na Santa Sé, trabalhamos para servir como ponto de comunicação entre Mahmoud Abbas, Shimon Peres e o Papa. A reunião ocorreu nos jardins do Vaticano. Depois, fomos, um judeu e um islâmico, na delegação do Vaticano em viagem de peregrinação à Terra Santa.
Isso pode servir de exemplo e influência a outras situações?
Depois do nosso encontro nos jardins do Vaticano, houve a guerra entre Israel e Hamas. Trocando e-mails com Bergoglio, ele me disse, usando estilo profético: vai chegar um momento em que o pó que se levantou com a batalha vai se dissipar, e a imagem do nosso abraço diante do Muro das Lamentações, essas mensagens de paz, vão servir como fonte de inspiração para lutar pela paz. Como diria Bergoglio, vão servir de imagem de que se pode, de que é possível.
Francisco (C), Skorka (D) e o xeque Omar Abboud no Muro das Lamentações
O senhor acredita que é possível, mesmo quando presenciamos o surgimento de grupos cada vez mais cruéis e impenetráveis como o Estado Islâmico?
O problema é duplo. Tem duas caras. Por um lado, está essa gente que propicia o ódio. Por outro, há um mundo que não reage como deveria reagir, um mundo que segue estando em seus cálculos, às vezes em seus mesquinhos cálculos, e não há um compromisso real contra toda essa demencial atitude. Não estou falando de intervenção militar. Primeiro, necessitamos de manifestações claras dos líderes religiosos mais importantes, das três grandes religiões, judaísmo, islamismo e cristianismo em todas as suas denominações, condenando esses atos. Vozes claras, com um idioma que não deixe lugar a dúvidas, a duplas interpretações. Necessitamos manifestações claras contra todo tipo de violência, de terrorismo. Outra coisa de que se poderia falar é: quem financia esses grupos, quem dá dinheiro para comprarem as armas que têm? Quais os canais de obtenção de dinheiro? Deve-se cortar isso. Em uma frase, elevar o cuidado da vida de cada homem por cima de todos os interesses e cálculos monetários. A guerra pararia. A guerra, como qualquer atitude humana, é questão de cultura. Quando há uma cultura de destruição, de ambição, de querer ser dono do mundo, estamos mal, e essa cultura segue sendo dominante. Outra questão é considerar que Israel é a causa de todos os problemas. É um subtema.
Em meio a tudo isso, há o drama dos refugiados. Como o senhor vê isso?
É um drama enorme. Qual será o futuro dessa gente, se não podem voltar a seus lugares de origem? Sofrerão muito. Estarão em meio a uma cultura que não é sua, com idioma que não seu. Uma coisa é quando alguém quer imigrar e adota o novo país, se prepara, estuda, vai e aceita as regras do país. Outra é ter de migrar por desespero. Toda migração ocorre por algo que incomoda, até porque o homem tende a ser mais sedentário que nômade. A primeira coisa que se deveria fazer era frear a terrível matança na Síria. O problema não é só o que fazer com os migrantes. O problema é: temos, como humanidade, o direito de nos manter indiferentes enquanto ocorre essa matança? Após o Holocausto, houve matanças terríveis na África, misérias e fomes terríveis na África e outros lugares, e o mundo não socorreu as pessoas. Temos hoje tecnologia para ajudar muitíssimo aos necessitados. Segue havendo um egoísmo na atitude em relação ao seu próximo, que é o centro de todos esses males. Quando terminar este terrorismo, começarão outras crises. Mas não só por sermos humanos e termos conflitos, e sim porque o compromisso de grande parte da humanidade, os compromissos que aparecem na Bíblia, são aceitos por todos que falam em democracia, em direitos humanos, mas essas pessoas não agem para baixar os níveis de agressividade, egoísmo e egocentrismo. Conflitos sempre haverá, o homem está cheio deles. A questão é até onde a humanidade mantém o grau de conflitividade por carência de um compromisso real e profundo de justiça social, de bondade, misericórdia e direitos humanos, que muitos proclamam, mas poucos praticam.
O senhor fala sobre isso com o Papa?
Nós nos falamos sempre. E esse discurso que estou fazendo é o que ele pratica, de não destruir nossa casa, viver com responsabilidade, não se crer dono da vida alheia.
Há medidas práticas previstas?
Há medidas que se fazem em nível de Vaticano, por iniciativa do Papa, como projetos de escolas, educativos. São projetos especiais em nível global, para transmitir educação e valores. O Vaticano, por meio do Papa, tem o clamor de um líder com muita credibilidade, talvez o líder com mais credibilidade para grande parte da humanidade, não apenas cristãos. É um homem que vive de acordo com o que acredita. Mas outros líderes deviam fazer o mesmo.
O que fazer quanto à expansão do EI?
Alguma coisa deve falhar em relação a esses terroristas, em nível de afeto. Algo deve ocorrer com eles em sua estrutura afetiva. Algo foi bloqueado por alguém. Não sou expert em psicologia, nem sei se há alguém que possa explicar o que ocorre. Mas a chave é o afeto. O amor é a palavra-chave da Bíblia judaica e é a base da Bíblia cristã. Amar ao eterno teu Deus, amar ao estrangeiro, amar ao teu próximo como a ti mesmo. Certa parte do desenvolvimento afetivo dessas pessoas tem algum problema.
Vocês se falam como? Ele demonstra angústia com o que ocorre no mundo?
Falamos mais por e-mail. Ele demonstra grande preocupação. Não gosto de usar a palavra angústia, porque a angústia paralisa, e ele é um homem de ação. A preocupação leva à ação. O que ele me diz é o que ele diz a todos. É uma pessoa muito transparente e criou muitos canais de diálogo. Sempre nos falamos sobre algum projeto, algo para fazer. Muitas vezes temos nos encontrado: em setembro do ano passado na Filadélfia, depois em dezembro. Em 30 de junho, em Roma, fizemos algumas coisas juntos. Foi a última vez que nos vimos. Estamos sempre conversando e projetando pequenas coisas.
O livro
Em Sobre o Céu e a Terra, o papa Francisco e o rabino Abraham Skorka, em diálogo franco, revelam tudo que pensam acerca de Deus, ateísmo, aborto, morte, fundamentalismo, homossexualidade e vários outros temas. O papa Francisco (então cardeal Jorge Mario Bergoglio) e o rabino Abraham Skorka, reitor do Seminário Rabínico Latino-americano, são grandes incentivadores do diálogo inter-religioso, por meio do qual buscam construir horizontes comuns diluindo particularidades. Sobre o Céu e a Terra é o resultado de uma série de conversas profundas, realizadas na sede do Episcopado e na comunidade judaica Benei Tikva.