Ainda sob o impacto emocional dos atentados terroristas perpetrados pelo Estado Islâmico em Paris, pelo menos 27 dos 50 governadores dos Estados Unidos anunciaram que não irão receber refugiados sírios. A alegação é a possibilidade de terroristas se infiltrarem entre os civis. Nas entrevistas abaixo, os especialistas Bruno Rocha Lima e Deisy Ventura comentam a iniciativa.
Bruno Lima Rocha, professor do curso de Relações Internacionais da Unisinos e ESPM-Sul
Qual a análise inicial sobre a decisão de governadores dos Estados Unidos de não receber refugiados sírios?
É uma tentativa de dizer que, entre os refugiados do Oriente Médio, especialmente os da Síria, poderemos ter pessoas com ideias do Estado Islâmico, com a intenção de reproduzir isso nos Estados Unidos. O Partido Republicano, no meu entendimento, está em uma escalada mais à direita no sentido de reproduzir o discurso incorporado na pré-candidatura do Donald Trump.
Não sei se isso poderá ter até o efeito indireto de tornar os Estados Unidos alvo de terrorismo, algo que não ocorre desde a maratona de Boston (abril de 2013). Também pode ser algo pensado para reforçar a política interna de fechamento de fronteiras. No caso da maratona de Boston, os jovens eram do Daguestão. Estavam adaptados a Boston, mas teriam ido passar férias na casa dos avós e treinado com o ramo do califado do Cáucaso na Chechênia. Foi avisado para que os Estados Unidos não recebessem. A direita aproveita essas brechas para reforçar e radicalizar a política.
Essa recusa aos imigrantes sírios é uma medida prudente e de autodefesa, por eventualmente afastar terroristas infiltrados entre imigrantes, ou imprudente por causar exclusão e apostar em uma solução punitiva de civis?
Considero imprudente e xenófoba. Isso reforça a aliança dos neoconservadores nos Estados Unidos. Do ponto de vista da segurança, é absurdo. Mais vigilância do que os Estados Unidos já tem, seria quase impossível. Tudo pode acontecer, mas não acredito que haverá outra ação do porte do 11 de Setembro. É uma decisão que radicaliza o debate, com a lógica do Ocidente versus mundo islâmico. É uma tese de choque de civilizações. Torna o mundo um grande campo de batalha. O terror não é islâmico, é de duas redes de terrorismo que professam uma doutrina islâmica sunita ultraconservadora.
Em que medida os refugiados sírios, sem relação com extremismos, irão sofrer as consequências das ações terroristas do Estado Islâmico? Isso pode ampliar o processo de radicalização?
Sim, pode aumentar xenofobia, pode transformar as políticas de segurança na Europa, que vão colocar milhares de europeus do Islã sob suspeita. As populações de origem árabe da França e Bélgica são as mais atingidas. Isso reforça o discurso do ódio e inclusive pode ampliar a adesão às redes terroristas. Depois do atentado, a principal meta de uma rede terrorista é conseguir novos adeptos. O que tem de ser reforçado é que o sistema de crenças da Al-Qaeda e do Estado Islâmico é compartilhado inclusive por alguns dos aliados dos Estados Unidos, como Arábia Saudita e Catar.
Deisy Ventura, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP)
Qual a análise inicial sobre a decisão de governadores dos Estados Unidos de não receber refugiados sírios?
Os cinco autores dos atentados de Paris identificados até o momento são franceses. Logo, se a solução para a segurança pública fosse a eliminação total do risco, seria mais lógico que estes governadores impedissem o ingresso de franceses no território de seus Estados, e em seguida começassem a expulsar os próprios cidadãos norte-americanos que portam armas.
Segundo o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, 130.347 pessoas foram mortas em incidentes envolvendo armas de fogo entre 2001 e 2011, enquanto, no mesmo período, três mil mortes foram relacionadas a atos de terrorismo (sendo 2.689 delas nos atentados de 11 de Setembro). Ou seja, o porte de armas mata 40 vezes mais que o terrorismo.
Essa recusa aos imigrantes sírios é uma medida prudente e de autodefesa, por eventualmente afastar terroristas infiltrados entre imigrantes, ou imprudente por causar exclusão e apostar em uma solução punitiva de civis?
Na minha opinião, trata-se de populismo securitário de quinta categoria. Estima-se que a cada ano 1 bilhão de pessoas circule no mundo para fins de turismo. Seria mais provável, portanto, a infiltração de um criminoso como turista do que como refugiado. Entre os jovens recrutados pelo Estado Islâmico, encontram-se dezenas de nacionalidades, inclusive de países desenvolvidos.
É absolutamente impossível prever a nacionalidade de um criminoso suicida. Ademais, este raciocínio seria semelhante a uma eventual recusa pretérita de acolher refugiados da Segunda Guerra Mundial porque entre eles poderia se encontrar um nazista infiltrado. Ainda que a possibilidade de infiltração nunca possa ser excluída, considerando que a entrada de refugiados é plenamente controlada pelas autoridades que os acolhem e possuem a obrigação legal de integrá-los, seria mais fácil supervisionar eventuais criminosos dentro dos Estados Unidos do que fora deles.
Em que medida os refugiados sírios, sem relação com extremismos, irão sofrer as consequências das ações terroristas do Estado Islâmico? Isso pode ampliar o processo de radicalização?
A fuga já é uma consequência do conflito armado, que inclui as ações do EI, mas igualmente os bombardeios do governo sírio e da oposição armada, além dos aliados de cada um deles. Quanto aos refugiados, é importante entender que já ultrapassamos a cifra de 60 milhões de deslocados forçados no mundo, dos quais cerca de 20 milhões são refugiados, cerca de 1,8 milhões são solicitantes de refúgio e 38,2 milhões são deslocados internos.
Entre os refugiados, 86% se encontram nos países em desenvolvimento: Turquia, Paquistão e Líbano são os países que mais acolhem refugiados (30%), seguidos de Irã, Etiópia, Jordânia e Quênia. Isto significa que a recusa destes governadores norte-americanos, na prática, não tem repercussão significativa na tragédia humanitária que está em curso. Esta recusa de receber refugiados sírios é apenas uma agressão simbólica, um convite à discriminação e um desrespeito ao direito humanitário, provavelmente inspirado por uma demagogia tacanha.
Ela em nada protege os cidadãos americanos pois não ataca a origem dos atentados. Bem ao contrário, a política externa norte-americana tem grande responsabilidade por diversos conflitos armados em curso no mundo árabe, e consequentemente pelo próprio aumento do número de deslocados forçados. Só o que poderia proteger os cidadãos norte-americanos é saber de onde vêm o dinheiro e as armas que sustentam os conflitos armados hoje em curso no mundo, quais são os seus motivos e quem deles tira proveito.