Sarcelles é uma cidade atípica da periferia urbana francesa. Localizada no subúrbio norte de Paris, logo acima de Saint-Denis, é considerada como um laboratório experimental do modelo de "viver junto". Seus cerca de 60 mil habitantes representam mais de 90 nacionalidades, em um mosaico de crenças numa composição inédita. Há cristãos do Iraque, curdos, turcos, judeus e muçulmanos de países do Magreb, imigrantes da África subsariana, das Ilhas Comores, originários da Índia e do Paquistão ou refugiados da Síria, entre tantos outros.
Quarta municipalidade mais pobre da França, com 40% de habitações populares, Sarcelles figura na polêmica classificação do "apartheid" francês, estabelecida recentemente pelo primeiro-ministro Manuel Valls para denunciar os guetos urbanos não integrados no espaço republicano. E também é um foco de radicalização islâmica, com indivíduos suspeitos sob vigilância das autoridades.
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Há três anos, o modelo sarcelliano foi abalado por um ataque a uma mercearia judaica. No ano passado, incidentes ocorreram em meio a uma manifestação pró-Palestina. Em janeiro deste ano, a cidade entrou no percurso de fuga dos irmãos Kouachi - autores do atentado ao jornal Charlie Hebdo -, e um de seus habitantes, Yoahn Cohen, morreu pelos disparos de Amedy Coulibaly na mercearia Hyper Cacher.
O prefeito François Pupponi diz fazer o que pode para manter a comunidade unida, mas admite que, após os massacres de sexta-feira passada, sua tarefa foi dificultada:
- Há uma verdadeira ruptura e um crescente risco de afrontamento entre as comunidades. O sentimento de islamofobia cresce. As pessoas estão fartas, e apontam os jovens muçulmanos como os culpados e responsáveis por tudo o que se passa. Será preciso muito diálogo para acalmar os espíritos. E um atentado desse tipo só vai agravar.
Pupponi não esconde que sua cidade, assim como muitos outros subúrbios da França, são alvos potenciais de recrutamento do Estado Islâmico.
- Nesses bairros há muitos jovens desestruturados e manipuláveis que são presas fáceis para os radicais islamistas. É um terreno fértil para recrutar futuros terroristas, e os jihadistas compreenderam isso há muito tempo. O poder público também entendeu, mas não agiu para evitar - acusa.
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A municipalidade reconhece que a coabitação em Sarcelles vem sofrendo uma tendência de separação interna: as comunidades se isolam em seus bairros. Assentados em um café na praça central, bebendo um chá, os jovens Kerim, garçom de 22 anos, e Ahmet, eletricista de 21, confirmam os receios do prefeito. Nascidos na França, muçulmanos de origem turca, ambos sentem o aumento dos sinais discriminatórios.
- Tudo o que os jihadistas querem é nos separar, mas não devemos cair neste jogo e sim nos manter unidos. Mas a islamofobia já é maior desde sexta-feira. Moro em um bairro judeu, e os militares protegem as sinagogas, mas também me sinto em perigo. Na rua, as pessoas evitam falar conosco porque somos muçulmanos - queixa-se Ahmet.
Kerim, que condena os atentados e o Estado Islâmico (EI), diz temer a estigmatização:
- Há de tudo aqui, judeus, cristão, muçulmanos... Crescemos juntos sem problemas e queremos continuar assim. Os líderes políticos devem parar de falar e começar a agir para destruir o EI. Mas acho que só vai piorar. Será a Terceira Guerra Mundial, talvez.
Os judeus Hassid e Knafo, de origem tunisiana e marroquina, migraram para a França nos anos 1970, mas avaliam que não repetiriam o gesto hoje. Foto: Fernando Eichenberg
Os amigos franceses de origem tunisiana e marroquina, Prosper Hassid, 68 anos, e Prosper Knafo, 54, ambos judeus, conversavam em outro café, nem sempre de acordo com as soluções para os atuais problemas da França. O primeiro acredita que é preciso levar a guerra contra o EI até as últimas consequências, já o segundo pensa que a intensificação dos bombardeios na Síria é "colocar mais lenha na fogueira".
Os dois, no entanto, são nostálgicos do tempo em que migraram para a França, nos anos 1970, com trabalho e vistos de permanência garantidos. Nos dias de hoje, dizem que não repetiriam o mesmo gesto.
- A França está um lixo, é preciso limpá-la. O país está mais pobre, há mais desemprego, e mesmo os franceses estão querendo ir embora. Hoje, não deixaria a Tunísia, lá tem sol, praia, e os muçulmanos são mais tranquilos - diz Hassid.
Knafo tem opinião semelhante:
- Temo pelos meus filhos e netos. Acredito que a situação vá piorar. No mínimo, vai ficar mais difícil.
Yac, 32 anos, francês de confissão judia, trabalha em um estabelecimento de piercings e tatuagens. Ele celebra o fato de ter verdadeiros amigos muçulmanos, que recebe para jantar e com quem viaja de férias.
- Tivemos problemas aqui, é verdade. E dá medo o antissemitismo, a xenofobia e a islamofobia, pois mostra a rejeição de pessoas pelo outro. Temo pelos meus filhos de 10 e 12 anos. Para mim, tudo é uma questão de educação. Educar aceitando as diferenças.
Confira o mapa dos ataques:
Atentados em Paris
Mais de cem pessoas morreram na noite de sexta-feira, em Paris, na França, após uma série de ataques terroristas em diversos locais da capital francesa. Tiroteios e explosões ocorreram de maneira coordenada em seis lugares: no Boulevard Voltaire, em frente ao bar La Belle, Bataclan, na Rua de la Fontaine, no bar Carillon e no Stade de France. Logo após os ataques, o presidente francês, François Hollande, decretou estado de emergência e fechou as fronteiras do país.
Em vídeo, veja como foi a sequência dos ataques em Paris:
Poucas horas depois das mortes, o Estado Islâmico assumiu a autoria dos atentados. A polícia fez prisões, na Bélgica, de suspeitos de envolvimento com os ataques em Paris, mas ainda trabalha para identificar os nomes de todos os possíveis envolvidos na ação. Oito terroristas morreram durante as ações, mas acredita-se que outros organizadores dos atentados estejam à solta.
O Itamaraty confirmou dois brasileiros entre os feridos nos atentados, que já estão fora de perigo.
Confira o mapa dos ataques: