A tempestade da noite de quarta-feira – acompanhada de raios, queda de granizo e vendaval – vai ficar gravada na memória de muitos moradores da Região Metropolitana. Nas horas que se seguiram ao temporal, quase todo mundo tinha uma história para contar – assustadora, dramática e em alguns casos até mesmo trágica. De uma forma ou de outra, uma população inteira foi afetada. A seguir, confira um conjunto de relatos das experiências que foram vivenciadas durante a borrasca.
Pedaço de árvore invade quarto
Amanda Rebello Linck, 22 anos, publicitária, moradora da Rua Carazinho
"Quando começou toda aquela chuva, eu estava na cozinha, cuidando uma janela que começou a pingar. Achei que podia acontecer alguma coisa ali, porque ventava muito e a janela batia. Nessa hora, minha mãe estava dormindo. Meu padrasto a chamou na sala para ver alguma coisa, mas ela não queria ir. Levantou de muito mau humor. Uns dois ou três minutos depois, estávamos eu, ela e meu namorado na cozinha, quando deu um baita estouro. Sei lá o que passou pela nossa cabeça. Eram quatro pessoas correndo pelo apartamento. Passamos pela sala e não vimos nada. Corremos então para o quarto da minha mãe. Uma árvore enorme havia caído sobre o prédio, e um galho despedaçou a persiana, o vidro e a moldura da janela. Invadiu o quarto. Por questão de minutos, minha mãe deixou de ser atingida pelos vidros. E agora estamos com a árvore aqui dentro. Tapamos o rombo da janela com sacos de lixo e durex. Nem fui trabalhar, porque estamos fazendo plantão em casa. Continua a chover, e a gente não sabe o que pode acontecer. Além disso, uma parte do portão do prédio caiu, e a janela está aberta. A gente imagina tudo, que pode entrar alguém, porque moramos no primeiro andar."
Agilidade de mãe salva bebê
Ananda Hoeppel, 28 anos, psicóloga, moradora do bairro Boa Vista
"Foi horrível. Eu estava na cama os meus filhos, André, de 35 dias, e Arthur, de cinco anos. Meu marido foi fechar a janela do quarto do bebê, porque começou a trovoar. Eu disse: "Arthur, vai ver a janela junto com o pai". Quando o Arthur chegou na porta, ainda fiz um comentário: "Só falta cair o teto". Nessa hora, deu um estouro, um barulho muito forte. Eu tive uma coisa de instinto: me atirei em cima do bebê. Nisso, entrou uma ventania por baixo das telhas, as janelas bateram e o teto de gesso do quarto caiu inteiro, em cima de mim. Arranhei as costas e o braço direito, fiquei com dois galos na cabeça. A sensação foi única: de medo, angústia, raiva, milagre. Porque se eu não tivesse pulado, o gesso teria acertado o bebê. E se o Arthur não tivesse saído do quarto na hora certa, eu ia ter de escolher um dos meus filhos. Depois disso, o Arthur ficou uma hora gritando. Eu estava frágil, com o quarto destruído, mas tive de ser forte. Fiz uma barraquinha com um edredom, no quarto do bebê, porque o Arthur achava que a casa toda ia cair. Ficamos lá. Não sei se foi certo ou errado, porque nessa hora a gente esquece a teoria. Disse a ele que o travesseiro era mágico e ia protegê-lo no sono. Durante a noite, comecei a pensar em mil coisas. Foi impossível dormir. Continuei escutando o estouro dentro da minha cabeça."
Avião jogou de um lado para o outro
Any Ortiz, deputada estadual (PPS)
"Eram 22h e pouco, eu estava em um voo de Brasília e já dava para ver Porto Alegre pela janela. O piloto disse: 'Preparem-se para o pouso'. Quando o avião estava descendo na pista, houve uma porrada, um estouro no lado esquerdo. Foi como levar uma batida na lateral do carro. O avião foi empurrado para o lado, todo mundo sentiu o impacto e foi junto. Aí não deu mais para ver o que tinha na rua. Foi um momento horrível, que apavorou todo mundo. Acho que a gente chegou em Porto Alegre bem na hora em que estava se armando o temporal e entramos em uma nuvem grande. O piloto arremeteu, passou um tempo sem dizer nada e então falou que não tinha conseguido pousar, que ia tentar do outro lado da pista. Os passageiros ficaram em silêncio absoluto, com todo mundo apavorado. O avião circulou um tempo em Porto Alegre, mas o piloto disse que o vento era muito forte. Não dava para controlar a aeronave. A turbulência continuava, algumas horas mais forte, outras menos. Descemos em Florianópolis, para abastecer. Ninguém saiu do avião. Foi aí que eu vi as pessoas chorando, falando ao telefone, porque quando para no chão é que as pessoas distensionam. Permanecemos um tempo no solo e voltamos. Quando pousamos em Porto Alegre, pelas 2h, estava chovendo. Até chegar em casa, foi tenso. Fui vendo alagamento, árvores caídas, falta de luz. Pensei: "Eu estava lá em cima, no meio dessa tempestade". Já voei muito, já peguei muita turbulência, mas nunca vi nada como esse deslocamento lateral".
Cirurgias suspensas no Clínicas
Nadine Clausell, vice-presidente médica do Hospital de Clínicas
"Nós tivemos no hospital uma repercussão que envolveu alagamentos, danos estruturais, problemas em calhas, janelas, portas e elevadores. Uma das áreas comprometidas foi a CTI, que fica no 13º andar, o último. As janelas são viradas para o Guaíba, de onde veio a tempestade. Ali houve vazamentos e janelas que rebentaram. Foi violento. Uma parte da CTI foi alagada, e tivemos de desativar nove leitos. O uso deles ficou impossibilitado por conta da água. Isso redundou em um gigantesco processo de reacomodação de pacientes no hospital. No bloco cirúrgico, no 12º andar, também tivemos alagamentos e equipamentos estragados, caso de um bisturi de argônio, super específico, usado em transplante de fígado. Mas fomos adiante, apesar das condições imperfeitas, e fizemos um transplante hepático infantil, porque houve uma doação durante a noite. Mas reduzimos o número de cirurgias no bloco. Cirurgias de menor complexidade foram canceladas. Os pacientes vão ser chamados depois. Cirurgias de grande porte também foram canceladas, porque nesse casos sempre tem risco de o paciente precisar de CTI. Esses problemas se repetiram em várias partes do hospital, principalmente por causa do vento. Estamos vivendo um momento muito atípico. Acho que não vai regularizar tão cedo, porque se cria um efeito cascata. Comunicamos ao Samu para não mandar pacientes para a emergência, que ela é a porta de entrada de pacientes graves. Se colocamos o pé no freio nas cirurgias, temos de colocar pé no freio também na emergência."
Chuva de pedra parecia uma guerra
Rodrigo Dimer, 29 anos, ajudante de motorista, morador da Rua Boa Saúde, no Bairro Rio Branco, em Canoas
"Entrei em desespero quando as primeiras pedras de gelo começaram a atravessar o telhado. Algumas eram do tamanho de uma bola de pingue-pongue. Outras, pareciam um caroço de abacate. Tentei ensacar os eletrodomésticos, os documentos e os móveis. Mas não deu tempo, pois moro sozinho. Foram 15 minutos de pavor. Na outra casa, ouvia os gritos da minha mãe, que estava preocupada comigo. Não consegui sair. Sabe guerra? Parecia que eu estava no meio de uma. O barulho do granizo destruindo as telhas foi ensurdecedor. Para me proteger, arrastei o colchão e o coloquei sobre o roupeiro, no quarto. Entrei no roupeiro e fiquei ali, esperando passar. Saí quando o granizo parou. Só então percebi a destruição total dos telhados das três casas do terreno. Entre elas, uma que ainda estou construindo. As telhas de amianto de 5mm não aguentaram. Não sobrou uma inteira. No escuro, e ainda chovendo, passamos a ajudar outros vizinhos que também sofreram danos. Fomos para a casa da minha avó, do outro lado da rua, que também ficou destelhada. No improviso, montamos uma barraca dentro de casa e aguardamos amanhecer, esperando a chuva parar. Mas ela não parou. Em 29 anos morando aqui, foi a primeira vez que vi algo assim. Foi um horror."
Granizo quebrou telhas e vidros
Sandro Rolim, 46 anos, publicitário, morador do Rio Branco, de Canoas
"Na hora do temporal, eu estava em casa com a minha mãe, minha sobrinha e meu irmão. Havia muito relâmpago e raio, um atrás do outro. De repente, começou a vir um pouco de vento, faltou luz, depois começou um vento muito forte e então chegou o granizo. Mas isso fui tudo muito rápido. Em questão de três minutos, mudou completamente a situação. O granizo veio com muita força, com pedras grandes. Dali a pouco não resistiu e começou a abrir buraco no telhado e no forro de PVC. Primeiro foi no quarto da minha mãe, depois na cozinha e daí no resto da casa. Foi muito assustador. Minha mãe ficou muito nervosa. Só na cozinha, foram mais de 10 buracos. No quarto da minha mãe, cinco buracos. No forro, são buracos de cinco a 10 centímetros. Nas telhas, de 30 a 40 centímetros. Posso dizer que quebrou todas as minhas telhas. Parece uma área de guerra. Na sala de jantar, o granizo quebrou quase todos os vidros. São 18, e ficaram apenas três inteiros. Entrou água em praticamente tudo. Nem tive como ir trabalhar. Consegui uma lona e coloquei em parte do telhado. Estou secando a casa e rezando para não chover mais."
Árvore cai no meio de carro
Marcos Saldanha, 24 anos, trabalha com finanças e mora no bairro Rio Branco, na Capital
"Eram cerca de 23h. Eu tinha acabado de deixar meu amigo e me dirigia para casa, na Rua Domingos José de Almeida, no bairro Rio Branco. Chovia muito e estava tudo escuro, então eu me guiava pelas luzes do carro. Era tanta água que os limpadores de para-brisa não davam conta. Fui dirigindo devagar, para evitar acidente, quando vi galhos e fios de energia elétricos caídos na rua da minha casa. Começou a chover granizo, então resolvi esperar no carro até acalmar, para depois ir caminhando. Consegui avisar minha família por telefone que eu estava lá. Depois escutei um poste caindo. Fiquei assustado e decidi sair de lá, dando ré. Foi aí que a árvore caiu em cima do meu carro. O capô afundou e trincaram todos os vidros. Se houvesse alguém na carona, eu não sei se sairia vivo. No desespero para sair, não consegui abrir a porta. Comecei a dar socos e chutes no vidro, e até cortei um pouco a mão. Minha mãe apareceu e conseguiu abrir a porta por fora. Foi horrível, não sei se foi a maior sorte ou o pior azar que tive na vida".
Viagem traumática abaixo de granizo
Aline Bello, 36 anos, empresária, moradora do bairro Jardim Itu-Sabará
"Estávamos em Gravataí, vindo para Porto Alegre. Era em torno de 22h15min. Chovia forte, mas não estava caindo granizo. No carro estávamos eu, meu marido e dois filhos, Júlia, de 14 anos, e Inácio, de quatro anos. Quando pegamos a avenida principal, começaram a cair as pedras. Entramos em desespero. Era muito barulho. A impressão é de que os vidros do carro iam quebrar. A minha preocupação era que atingisse as crianças. Entrei em pânico, comecei a chorar dentro do carro desesperadamente, meus filhos também. Pedi ao meu marido para estacionar o carro em algum lugar coberto. Mas foi difícil achar um lugar seguro. Havia muitos alagamentos. O local que a gente achou era uma telhado na frente de uma loja ou de um bar. O granizo batia nas telhas e furava. Ali havia umas pessoas se protegendo, tomando chuva. Para ajudar, perguntamos se alguém queria carona para Porto Alegre. Um homem aceitou e depois, no carro, contou que era morador de rua. Ficamos uns 15 minutos parados ali, até o granizo amenizar. Mas havia muita água no caminho. Fomos de Gravataí até Cachoeirinha com água subindo até a janela do carro. Meu marido tentava ir pela lateral da avenida. Quando chegamos em Porto Alegre, tentamos ir por dentro do Jardim Planalto. Mas vimos vários carros voltando. Era um valão que tinha trasbordado. O cheiro era de podre. Começamos a procurar vias alternativas. Fomos indo, indo, indo, até que conseguimos chegar em casa, perto das 23h45min. Quando chegamos, não tinha luz. Foi uma experiência traumática."
Veja fotos dos estragos no Estado: