As recentes declarações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre a crise política e sua reaproximação com o governo de Dilma Rousseff foram criticadas pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em entrevista ao Gaúcha Atualidade.
- Não acho bom, nem para ele e nem para o país. Isso põe ele no foco, atrapalha a consolidação do poder da presidente - afirmou FHC em entrevista aos jornalistas Daniel Scola e Rosane de Oliveira
Comentando a crise política, FHC defendeu novamente a saída da presidente - para ele, seria o caminho "menos custoso". E se mostrou disposto a conversar com Dilma:
- Ah, (converso) a qualquer momento. Quando o presidente da República chama alguém, esse alguém tem a obrigação de conversar. Isso não quer dizer aderir, quer dizer conversar.
FHC está lançando o livro que lança o livro "Diários da Presidência", com anotações feitas entre 1995 e 1996. Também lembrou os momentos mais difíceis no cargo e comentou a relação do PSDB com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Abaixo, veja a íntegra da entrevista:
Como o senhor tem recebido a reação da divulgação do seu livro Diários da Presidência? Trechos publicados do seu livro foram recebidos com uma certa polêmica. Como o senhor tem recebido essa reação?
Com tranquilidade. Porque é um livro muito aberto, muito sincero, como eu digo lá. Não é um julgamento de pessoas, nem de situações. É uma reação momentânea e aberta, franca, minha. Pessoalmente, eu não tenho nenhum problema que critiquem ou não, que digam isso e aquilo. Acho normal. O meu interesse, na verdade, é, primeiro, mostrar como funciona realmente, por dentro, quem toma as decisões de poder. Quais são os constrangimentos de todo tipo: pessoais, de família, amigos, inimigos, interesses e tudo mais. Segundo, porque acho que o Brasil está vivendo um momento de tanta confusão, tanta dificuldade, que é preciso também dar um estímulo. Também tive muita dificuldade para enfrentar, e enfrentei. A condição é de que você tenha um rumo, tenha uma agenda, que você tenha valores, acredite no que está fazendo. O resto você vai levando.
No livro, o senhor se mostra incomodado com essa "política toma lá, dá cá" no Congresso. E é uma queixa de todos os ex-presidentes, mas acho que nenhum explicitou com tanta clareza como o senhor nos seus diários. O senhor vê alguma forma de mudar esse tipo de relação entre o Planalto e o Congresso?
No jogo político é normal que haja, eu não digo um "toma lá, dá cá", mas quando você vai governar você precisa de alianças. E só se faz alianças com é desigual - porque com um igual não é aliança, é você mesmo. E isso implica naturalmente em dar participação. Agora, tem limites. Primeiro, você tem que ter um objetivo. Se aceita até um "toma lá, dá cá", desde que seja para cumprir um objetivo, uma agenda, alguma coisa de propósito maior para o Brasil. No meu tempo, o número de partidos que realmente contavam era realmente pequeno, três ou quatro. Era muito mais simples. Hoje você tem no Congresso vinte e tantos partidos. A presidente Dilma teve de criar 39 ministérios, e aí foi perdendo o sentido que justifica a política que são seus valores, seus objetivos. Você dá porque, se não der, não tem o voto. E voto para quê? Não tem agenda. Acho que a leitura do livro mostra que nós cumpríamos uma agenda que tínhamos no programa apesar do toma lá, dá cá que eu não gosto, reclamava o tempo todo e restringia também o máximo que eu podia. E "toma lá, dá cá" não significa compra, significa apoio. Mesmo assim, lutando muito. Tem que mandar ver se a pessoa indicada tem honorabilidade ou não, qual é a qualificação técnica dela. você tem que lutar contra o puro "toma lá, dá cá".
O senhor usa uma expressão que é muito recorrente: "só querem interesses menores, um carguinho ali, um contratinho ali".
Você leu as memórias do Getúlio? Ele também reclamava.
ÁUDIO: ouça, abaixo, a íntegra da entrevista
Alguém em algum momento se manifestou sobre o que foi escrito pelo senhor no seus diários, presidente? Algum descontentamento, algum elogio? Alguém fez alguma referência sobre isso?
Eu vi nos jornais, né. Parece que o deputado Dorneles disse que não tinha pedido, nunca, nada. É verdade, pode ser que ele não tivesse pedido. Ele foi com um grupo de deputados. O ex-governador Maluf disse que eu deveria ter escrito isso quando era jovem, ele esquece que eu escrevi isso há 20 anos. Foi um episódio qualquer que ele não gostou. Mas assim, nada dramático, não.
Hoje não tem como fazer política ou comandar a Presidência da República sem o "toma lá, dá cá"?
Nem hoje, nem nunca. Agora, o problema não é o "toma lá, dá cá". Até que ponto você vai? Qual é o limite disso? Segundo: para quê? É nisso que eu insisto muito. você tem que ter um objetivo, uma agenda. Quando o "toma lá, dá cá" é para você ficar no poder, aí perde qualquer grandeza. Fica uma troca infinita e quem perde é o país.
Um dos pontos mais polêmicos, presidente, foi a sua manifestação em relação a Petrobras, porque o senhor reconhece que foi alertado de que a Petrobras um escândalo.
Mas o escândalo que foi alertado ali não era de roubalheira, era de gestão. Havia uma sobreposição de gestão entre o conselho administrativo e os executivos, havia um diretor que mandava muito... Enfim, não era roubalheira.
O senhor se arrepende, hoje, de não ter estourado essa bolha? Porque é justamente no problema da gestão que as coisas aconteceram.
Eu estourei, eu mudei tudo. Reestruturação de cabo a rabo. Agora você tem que ver em que momento. Política não é uma coisa que você faz o que quer na hora. O político é responsável não só por suas convicções, seus valores, pelo o que é certo, mas por construir possibilidades de executar o que é certo. No caso da Petrobras, naquela conversa, nós estávamos ainda lutando pela quebra do monopólio do petróleo. E a diretoria da Petrobras estava de acordo. Você tem que ir passo a passo. E depois nós transformamos a Petrobras do que ela era, uma repartição pública, em uma empresa. O que quer dizer isso? Em vez de ter influência de partidos e políticos, que ela seja regulada por regras mais objetivas e pelo mercado. Isso nós fizemos com a Petrobras. Eu não levei nenhum político para a Petrobras, nem para o Banco do Brasil, nem para a Caixa Econômica, nem para uma nenhuma das empresas que ficaram com o Estado.
Mas foi no seu governo que o jornalista Paulo Francis foi processado pelo presidente da Petrobras...
Porque ele fez uma afirmação que o presidente da Petrobras disse: ou prova ou eu processo, porque é falsa.
Mas ali não acendeu, para o senhor, uma luz amarela de que as coisas na Petrobras poderiam ser mais graves?
Mas o Paulo Francis não tinha nada para provar, nenhuma indicação, nada. Eu até chamei o presidente da Petrobras, porque eu era amigo do Paulo, para ele retirar a queixa que ele havia feito nos Estados Unidos - e, lá, é gravíssimo isso. Ele disse: "mas a minha honra está em jogo. Tenho que ir em frente". O Paulo foi exagerado, fez uma afirmação sem que tivesse qual elemento de comprovação.
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Presidente, o que está sendo lançado agora é o primeiro volume da série "Diários da Presidência". São mais três volumes. O senhor pode antecipar, agora, na sua avaliação, qual foi o momento mais difícil do seus dois mandatos à frente da Presidência da República. E o que o senhor vai contar nestes quatro volumes, que possa ser pinçado como um momento mais marcantes, talvez mais difícil, ou o mais alegre nestes dois períodos.
Os mais difíceis foram a crise cambial de 1999 e depois a crise da energia elétrica em 2001. Eu suponho - gravei e nunca reli tudo, né? Mas provavelmente eu conto no detalhe como é que eu percebia cada momento. A crise foi uma coisa bastante dura de enfrentar. Mas, de janeiro a abril, nós conseguimos superar a crise cambial e retomar o rumo, tanto que mesmo naquele ano a economia cresceu pouco, mas cresceu. Na crise da energia elétrica o que eu fiz? Eu apelei a todos, chamei todo mundo ao Palácio: oposição, governo, líderes sindicais, empresários. Criei um comitê de crise, abri o jogo, expliquei ao país: ou nós reduzimos por conta próprio o consumo ou vai virar apagão. E funcionou. Mas forma momentos muito difíceis, muito tensos, porque tinham consequências tremendas ao país, e eu tinha que prestar atenção a isso. Agora, momento de satisfação você tem quando você vê o resultado. Por exemplo, cada vez que saía o chamado Coeficiente de Gini, que mede a diferença das classes, e dava positivo, eu ficava satisfeito. Todo mundo dizia que eu não ia querer fazer a reforma agrária, mas ninguém desapropriou mais terra do que eu. Assentamos muita gente, e eu ficava satisfeito. Foram vários momentos de angústia e vários momentos de satisfação. Mas você tem que ser devotado à função, não é um cargo. É um encargo.
O senhor sugeriu a renúncia da presidente Dilma Rousseff como um "ato de grandeza". O senhor sugere que ela entregue o cargo para Michel Temer ou espera que o vice também renuncie para haver uma nova eleição?
Não, eu estava pensando o seguinte. Como a presidente está numa situação tão delicada, tão difícil, com baixa popularidade, dificuldade de aprovar qualquer coisa no Congresso, o que seria com grandeza: "vocês querem que eu saia? Eu saio, mas primeiro me deem tais e tais reformas." Para criar um clima mais positivo, porque do jeito que está ela pode até ficar, mas vai empurrando o tempo com a barriga?
Qual seria o caminho mais adequado para o país?
O menos custoso é a renúncia. Qualquer outro sistema é complicado: o impeachment é um processo longo, é um debate, paralisa o país. Uma decisão do tribunal eleitoral que anule a eleição provoca também uma grande confusão. Tudo isso é muito fácil de falar e quem conhece o processo histórico sabe que tem um custo para o país muito elevado. São dois os caminhos menos custosos: ou ela assume, chama o país às falas e apresenta um caminho crível para o país e recupera a força, pode governar - mesmo que a gente fique contra -, ou ela pelo menos deixa uma marca forte. "Olha, eu saio sem vocês aprovarem tal e tal e tal coisa: uma reforma eleitoral porque esse sistema tá fracassado; mexe na previdência porque senão vai falir". Existem uma série de anseios nacionais e faz um gesto: "se fizerem isso, eu caio fora".
Se ela convidar o senhor para conversar, o senhor aceita?
Ah, em qualquer momento. Quando o presidente da República chama alguém, esse alguém tem a obrigação de conversar. Isso não quer dizer aderir, quer dizer conversar. Vamos ver quais são os pontos de vista, o que dá para conciliar ou não. Não tenho esses problemas.
E o que o senhor diria para ela?
O mesmo que eu estou dizendo para você. Ou você assume a liderança efetiva e promove as modificações necessárias, ou o país vai pouco a pouco perdendo não só confiança, mas oportunidades. Acho que está na hora de tentar dar uma virada. Com todos. A situação é calamitosa, não dá para pensar em termos de partido, mas em termos cívicos, de país.
O senhor faz alguma ressalva em relação ao comportamento do PSDB no Congresso, especialmente na relação dúbia com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha?
No Senado, o PSDB tem feito coisas bastante positivas, e na Câmara, também. Atitudes bastante fortes. Agora, a questão do Eduardo Cunha é a seguinte: ele é o presidente da Câmara. E você, para mover as coisas, precisa do presidente da Câmara. Minha opinião é que, diante de tudo que já se publicou e está comprovado, a existência de contas no exterior, ele vai perdendo condições morais de ser presidente da Câmara. Foi pedido para a comissão de ética para analisar a situação dele, eu acho que o PSDB deve ser implacável.
Nós estamos vivendo uma crise política e financeira muito graves. Há um ajuste fiscal proposto pelo governo que não está conseguindo ser destravado. O senhor defende esse ajuste?
Eu mesmo fiz ajustes, e é sempre penoso. Agora, você só consegue fazer os ajustes quando tem o apoio de setores importantes do país que se reflitam no Congresso, para ter maioria no Congresso. Mas se você não dá um horizonte de esperança, só faz o ajuste, é fazer operação sem anestesia. É o que está acontecendo. Como você faz? Tem que tapar esse déficit. Mas qual é a reação dos contribuintes, vai aumentar imposto em cima de mim e vocês vão crescer o governo, crescer o número de funcionários, livremente nomear de 60 mil para 100 mil entre o Lula e a Dilma? A população fica "meu Deus, o que o governo tá fazendo para reduzir os seus gastos?" Visível, nada. O exemplo tem de começar em casa.
O senhor sempre foi parlamentarista. Hoje teria como dar certo o parlamentarismo com 35 partidos, a maioria sem identidade programática e sem representação na sociedade?
Claro que não. O parlamentarismo é um sistema de partidos, e nós não temos partidos. Temos alguns, poucos, o resto é um aglomerado de pessoas com interesse de, geralmente, tirar alguma vantagem do governo ou do Estado. Isso não funciona. Teria de tomar várias medidas antes para restabelecer a confiança do povo nos partidos. O senador José Serra fez uma proposta boa: começar a distritalizar o voto na eleição municipal. Não se pode passar de um momento para outro drasticamente. Com essa quantidade de não-partidos de hoje, não vai funcionar parlamentarismo nenhum.
Qual será o desfecho não só da crise, mas do governo Dilma Rousseff? O que o senhor acha que vai acontecer?
Com relação à crise, é o seguinte: a economia tem mecanismos de autorregeneração, mas eles são muito custosos. Quais são: diante de uma dívida interna enorme, de R$ 2,7 trilhões, que o Brasil tem, e da desconfiança das pessoas de que o governo não tem capacidade de poupar para pagar esta dívida, isso desvaloriza as ações, a moeda e, quando desvaloriza a moeda, automaticamente abre espaço para os exportadores. Por outro lado, quando você tem uma situação de desvalorização dos bens, acaba tendo gente que queira investir e isso pode acarretar até uma desnacionalização. Então a economia se autorregenera a um custo enorme para todo mundo, desemprega muita gente, perde a propriedade muita gente, e com o tempo volta a ter algum horizonte.Mas não é o ideal, o ideal é que se antecipe a isso e amenize o processo. O ministro da Fazenda está tentando algumas medidas, mas não tem a base política para levar adiante. Na questão política, se não houver algum desses mecanismos de finalizar o governo Dilma, ela continua. Mas continua perdendo mais força, mais força, mais credibilidade, há mais briga entre os partidos, os pequenos interesses passam a tomar conta... É uma tristeza.
O senhor vê a possibilidade de se acabar com a corrupção sem uma reforma política profunda e sem acabar com esse modelo de financiamento de campanhas que temos hoje?
A corrupção, nem assim acaba, porque tem vários aspectos. Um deles é o comportamento, pessoas que se acham no direito de pegar dinheiro indevidamente. Isso sempre houve e continuará, mas não é disso que se trata a corrupção de hoje. A corrupção de hoje é institucionalizada, com objetivos políticos de passar dinheiro para partidos. E o dinheiro não sai de empresas, sai do governo. Você aumenta o valor dos contratos, as empresas pegam e repassam aos tesoureiros de partidos, de campanhas. Isso tem de ser quebrado. Isso mina a democracia. Não vai acabar com a outra corrupção, o desvio de conduta pessoal, que é outro tipo, grave também, que tem de ser tratado de outra maneira.
O senhor disse, no Roda Viva, que a presidente Dilma Rousseff é uma pessoa honesta e correta, mas não poderia dizer o mesmo do presidente Lula...
Não foi o que eu disse. Acho que ela é correta, não pega propina, essas coisas. A responsabilidade que ela pode ter é política, não pessoal, de conduta. E com relação ao presidente Lula, me perguntaram se é a mesma coisa e eu disse que ele deve ter interesse em passar a limpo algumas coisas que estão aparecendo. Mas não disse que é a mesma coisa. Ele tem que demonstrar que não tem nada a ver, porque foram levantados casos. E ele tem de mostrar que não tem nada a ver com esses casos.
Esse retorno estratégico do ex-presidente Lula às atenções é bom para o país? Ele se colocando como um protagonista das discussões, encostando na presidente Dilma, ajudando a tomar decisões...
Não acho bom, nem para ele e nem para o país. Isso põe ele no foco, atrapalha a consolidação do poder da presidente, então não acho. Acho que ele se expõe muito e tá se expondo. Ele tem uma história. Eu não sou daqueles que joga pedra no passado, e o Lula fez uma porção de coisas importantes. Na medida em que ele começa a tomar essas atitudes, sem esclarecer essas acusações, fica uma sombra que não é boa nem para ele, nem para o país.
O senhor vem lançar o livro em Porto Alegre?
Não estou lançando o livro em lugar nenhum, estou é fazendo debates às vezes. Eu vou fazer 85 anos, estou velho para ficar escrevendo dedicatórias indefinidamente... Eu quero que comprem, isso sim.
* Rádio Gaúcha