Acelerador do furto e do roubo de veículo, o comércio clandestino de autopeças soma 1,3 mil pontos de venda no Estado, segundo estimativas de autoridades. Esses estabelecimentos "caíram na ilegalidade" em 20 de agosto, data-limite estipulada pela lei federal 12.977/2014 para ser iniciado o processo de regularização no Departamento Estadual de Trânsito (Detran) - nesta semana, dois deles foram fechados em Porto Alegre por ação da Polícia Civil.
O número é seis vezes maior do que o dos 217 Centros de Desmanche Veicular (CDV) que se registraram no Detran. A partir da próxima semana, o órgão encaminha ofício às 497 prefeituras do Rio Grande do Sul comunicando as novas regras e solicitando a cassação de alvarás (se existirem) e o fechamento de ferros-velhos e de desmanches que operam fora da lei - fora da lista do Detran.
- Somente os CDVs registrados pelo Detran podem vender autopeças usadas - alerta Carla Badaraco, diretora técnica do Detran.
Ela afirma que as prefeituras deverão mapear empresas que atuam no ramo e suspender as atividades daquelas ilegais, como ocorre normalmente ao se constatar irregularidade. A medida tende a tirar do mercado pela via administrativa comércios que vendem peças furtadas e roubadas. Mas o tema precisa ser discutido com as prefeituras, diz Roberson Cardoso, assessor técnico da área de trânsito da Federação das Associações de Municípios do RS (Famurs):
- Se esses desmanches reabrirem as portas, desrespeitando nossa ordem, vamos precisar da ajuda do Estado, das forças policiais. Debatemos o assunto com o Detran antes da troca do governo, e teremos de voltar a conversar.
Comércio de peças usadas por ferro-velho terá maior controle
A iniciativa, ainda que pendente de ajustes, pode representar a primeira ação mais enérgica para um problema que se arrasta há décadas e só piora. Em 2006, por exemplo, quando os furtos e roubos superaram todos os índices até hoje no Estado, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) reconheceu que não tinha plano para reprimir os crimes.
Em 2007, foi sancionada a lei estadual 12.745 para tentar colocar ordem no mercado de autopeças usadas. Durante esse tempo, a SSP trabalhou para viabilizar a lei, em especial a partir de 2011, com a criação de mecanismo de controle de autopeças informatizado conectado à Secretaria Estadual da Fazenda e sob supervisão do Detran. Mas o sistema se mostrou complexo, e a lei, incompleta, porque não previa destinação para peças apreendidas.
Passados oito anos da aprovação da lei estadual, os crimes envolvendo veículos seguem em alta velocidade, sobretudo o roubo (quando há violência ou ameaça ao motorista). E, principalmente, na Capital, que concentra 52% dos casos (veja quadro).
Combate ao crime perdeu força
A partir de 2010, as investidas dos ladrões mais do que dobraram em relação à evolução da frota, destacando a Porto Alegre o deprimente título de "capital dos roubos de carros", com índices superiores a grandes metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro.
Nos últimos tempos, o combate ao crime parece ter pisado no freio. Conforme indicadores de eficiência divulgados pela SSP, inspeções da Brigada Militar em desmanches caíram 60% no ano passado. Em 2010, foram 16,5 mil (mais alto número desde 2007), contra 5,6 mil em 2014. Neste ano, o site não apresenta dados. Em Porto Alegre, a estatística da Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (Smic) confirma a tendência de queda. Em 2013, foram 14 interdições, contra seis em 2014 - todas após aviso de policiais.
- O agente municipal não tem competência legal nem condições técnicas para verificar se as peças são produto de roubo. Isso é papel da polícia. Ela nos comunica e interditamos o estabelecimento com base no Código de Postura - afirma Rogério Stockey, diretor da Divisão de Fiscalização da Smic.
Roubo de carros cresce 47% em Porto Alegre
A repressão policial só deve ganhar fôlego em 2016. No mês passado, a SSP editou uma minuta de projeto de lei que substitui a lei estadual de 2007 e a enviou para a Assembleia. Baseada na nova lei federal, a proposta prevê a apreensão imediata de peças sem comprovação de procedência lícita e possibilita a venda para reciclagem. É a principal aposta da secretaria de repressão ao furto e ao roubo de veículos e aos crimes conexos, à medida que falta dinheiro para investir em novas tecnologias.
- Nossa expectativa é de que o projeto seja votado até o final deste ano. Com a nova lei, pretendemos reduzir significativamente os crimes - afirma o tenente-coronel Luiz Dulinski Porto, diretor do Departamento de Gestão da Estratégia Operacional da SSP.
Cobrança por fiscalização eficiente
Ação da polícia desarticulou comércio na zona norte da Capital nesta semana (Foto: Tadeu Vilani)
Donos de desmanches que se registraram no Detran estão confiantes no sucesso das ações que visam regularizar o mercado de autopeças e acessórios usados. Mas fazem uma ressalva: os clandestinos devem ser combatidos pelas autoridades.
- Acreditamos na ideia, mas é preciso fiscalizar quem está fora da lei - afirma Jorge Escobar, gerente do Centro de Desmanche Veicular (CDV) Joas Car, no bairro Agronomia, na Capital.
Polícia desarticula quadrilha que roubava quatro carros por semana em Porto Alegre
Henrique Ribeiro, gerente do CDV Brasil Ribeiro, no Jardim Carvalho, lembra que a regularização do serviço exige investimentos, como alteração na estrutura de prédios e contratação de empregados, e teme concorrência desleal com estabelecimentos
irregulares.
- Somos pequenos. A gente está sofrendo para se adaptar e já gastamos uns R$ 70 mil - contabiliza Ribeiro.
Consultor em segurança, Dempsey Magaldi afirma que o cadastramento de peças e o controle absoluto sobre entradas e
saídas tende a intimidar os ladrões de carros, e também prega fiscalização rigorosa.
- Se isso não acontecer, nada adiantará - avalia Magaldi.
Julio Cesar Rosa, presidente do Sindicato das Seguradoras no Rio Grande do Sul (Sindseg-RS), lembra que um em cada três carros segurados roubados vai parar em ferros-velhos ilegais e demonstra ceticismo com a legislação:
- Se todos desmanches se regularizarem e ter fiscalização, acredito na lei. Do contrário, a indústria do furto e do roubo vai desviar peças para os não-credenciados.
Governo quer combater desmanches clandestinos com trituração de peças
Para Alberto Kopittke, vereador (PT) e vice-presidente da Comissão de Segurança da Câmara da Capital, a lei é importante e deveria ser acompanhada do cercamento eletrônico das cidades da Região Metropolitana, um projeto idealizado em 2012 pelo governo do Estado e pela Associação dos Municípios da Grande Porto Alegre (Granpal), entidade da qual Kopittke foi diretor.
Controle dos acessos ainda está indefinido
O cercamento consiste em instalação de câmeras de vigilâncias nos principais entroncamentos dos municípios dotadas de sistema capaz de identificar veículos em situação de furto ou roubo e emitir um alerta para uma central de monitoramento das polícias.
- A lei barraria os carros desmanchados aqui, e o cercamento eletrônico pegaria os levados para fora das cidades. A Granpal e o Estado assinaram um acordo, mas a Secretaria da Segurança Pública (SSP) decidiu fazer o projeto sozinha e não o fez - diz Kopittke, ex-secretário de Segurança de Canoas e ex-assessor do Ministério da Justiça.
Conforme a SSP, surgiram divergências entre a proposta da Granpal e a secretaria estadual, houve uma licitação cancelada e outra sem interessados. O projeto está em estudo pelo Departamento de Tecnologia da Informação e Comunicação do órgão.
A cada dia, 44 carros são roubados no Rio Grande do Sul
Para o delegado Luciano Peringer, da Delegacia de Repressão a Roubo de Veículos, a regra pode reduzir os crimes em 20%. Ele confia na sobrevivência dos CDVs:
- Dificilmente, (os proprietários) vão correr risco de que seja encontrado um vidro de carro sem procedência que vale R$ 100 e, por isso, ter todo o estoque de
R$ 1 milhão apreendido.
Nesta semana, Peringer desarticulou dois ferros-velhos - nas Avenida Baltazar de Oliveira Garcia e Sertório, em Porto Alegre - e prendeu 14 pessoas na Região Metropolitana, 10 delas ontem pela manhã.
Como funcionam os centros de desmanche veicular
- Com as nova regras da lei federal 12.977/2014 em vigor desde 20
de agosto, só pode vender autopeças usadas empresas registradas no Detran.
- A mais recente lista do Detran tem 217 estabelecimentos que encaminharam pedidos de regularização, chamados de Centro de Desmanche Veicular (CDV). Eles têm prazo até 20 de agosto de 2016 para atender a todas as exigências da legislação, como cadastramento de peças, adequação dos espaços para desmontagem e venda de autopeças, alvará de funcionamento da prefeitura, licenças ambiental e dos bombeiros, credenciamento na Secretaria Estadual da Fazenda e instalação de controle de estoque informatizado e de sistema de compra e venda de peças com nota fiscal eletrônica, entre outras providências.
- A relação dos CDVs registrados pode ser consultada no Portal dos Desmanches no endereço detran.rs.gov.br/portal-desmanches. O consumidor pode pesquisar dados da empresa, nome, endereço, telefone, e-mail e consultar qual dispõe a peça desejada.
- Os CDVs estão sujeitos a auditoria e fiscalização do Detran, que pode aplicar multas de até R$ 8 mil e descredenciar aqueles que desrespeitarem a legislação.
-Quem quiser abrir um CDV terá de se enquadrar na nova lei. Estimativas apontam existir 1,5 mil desmanches e ferros-velhos no Estado.
- Como apenas 217 procuraram o Detran para legalizar a atividade, os demais 1,3 mil operam clandestinamente. O Detran está pedindo às prefeituras para que sejam fechados, pois estão em desconformidade com a legislação federal.
- A partir de 2016, as polícias Civil e Militar poderão apreender peças sem origem lícita e encaminhar para indústrias de reciclagem, caso seja aprovado projeto de lei encaminhado mês passado para a Assembleia.