Caro Cheikh: não nos conhecemos, mas conheço bastante bem a cidade em que você teve um braço e as pernas queimados enquanto dormia sobre um colchão, no sábado. Um dia, quando a dor e a revolta tiverem passado e você compreender melhor a língua portuguesa, tente conhecer a história de Santa Maria. Você saberá que a avenida onde foi atacado liga a antiga estação férrea à região central. Essa cidade foi, um dia, o principal nó ferroviário do Estado, e uma boa parte de nossos antepassados desembarcou na velha gare e subiu a pé a Avenida Rio Branco rumo ao que mais desejava: uma vida melhor.
Sim, prezado Cheikh: essa terra que lhe acolheu não seria o que é se não fossem migrantes como você.
Li no site do Diário de Santa Maria que você teria dito: "Meus amigos brasileiros me queimaram".
Acredite, esse lamento dói tanto nos santa-marienses quanto em você.
Dói porque é desgraçadamente verdadeiro.
E tenho certeza de não ser desmentido se lhe garantir que nenhuma das pessoas que o cerca gostaria de ver sua terra lembrada como um lugar em que estrangeiros desamparados são agredidos de forma vil nas ruas.
Não longe de onde você foi atacado, ocorreu há 31 meses um episódio trágico. Numa madrugada de verão, 242 pessoas perderam a vida no incêndio de uma boate. A notícia correu mundo, a onda de compaixão e solidariedade foi imensa, e familiares e amigos das vítimas ainda acampam na praça em busca de justiça.
Santa Maria sabe que não pode permitir a imolação de inocentes. E você, Cheikh, é inocente.
Migrante e inocente, você, caro Cheikh, também é cidadão. Os que lhe atearam fogo têm contas a ajustar com a lei. Não atacaram só a você. Atacaram a própria comunidade. Se o castigo aos responsáveis tardar, certamente não tardará o repúdio ao gesto bárbaro e os braços que lhe ajudarão a se reerguer.
Porque o Brasil tem muitos defeitos. Mas os brasileiros têm um grande coração. Cito um exemplo: no início deste mês, um compatriota seu, Moussa Mbodji, conseguiu um emprego graças à mobilização de milhares de pessoas nas redes sociais. O responsável pela campanha para auxiliar Moussa, Ivandro Silveira, disse à repórter de Zero Hora Bruna Scirea: "O que fiz não foi grandioso. Eu estava na minha rotina e vi a oportunidade de ajudar alguém".
Caro Cheikh: a gente brasileira, que não faltou a Moussa, também não faltará a você.