Antes mesmo de amanhecer, o comboio já está circulando pelas principais ruas e avenidas de Porto Alegre. São vans, carros, ônibus e ambulâncias que percorrem diariamente centenas de quilômetros em busca de tratamento de saúde para moradores do interior do Estado. A chamada ambulancioterapia - prática antiga e conhecida dos gaúchos - também tem sido utilizada para outras finalidades. Adquiridos e mantidos com verba carimbada para a saúde pública, os veículos das prefeituras transportam estudantes, pessoas com consultas particulares ou convênios e até cidadãos que aproveitam a carona para passear, fazer compras ou visitar parentes na Capital.
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No dia 10 deste mês, o movimento de veículos e ambulâncias em frente ao Complexo da Santa Casa, em Porto Alegre, era intenso. Por volta das 7h, quase três veículos a cada minuto, em média, despejavam passageiros. Nem todos tinham a instituição que atende pelo SUS como destino final. Jovens com mochilas nas costas, aparentando serem estudantes, desceram de uma van e caminharam em direção ao Centro. Uma senhora chegou a abordar a repórter para pedir informação sobre uma clínica particular na Rua dos Andradas, a poucos metros de onde havia desembarcado.
Para quem busca tratamento de saúde, as caronas são encaradas como um desrespeito e uma aflição a mais. Há três anos tratando uma fibrose pulmonar, a aposentada Adelaide Guralski, 57 anos, de Alpestre, já perdeu a conta de quantas vezes, antes de retornar, o carro no qual veio teve de esperar pessoas que tinham outros compromissos - mas a Secretaria da Saúde do município nega a existência de irregularidades. Adelaide precisa de um transplante de pulmão e, todos os meses, viaja 800 quilômetros para realizar exames e consultas na Santa Casa.
- Tenho de usar oxigênio e sofro para ficar esperando. Agora, temos de esperar outra passageira que nem veio com a gente - lamenta a aposentada antes de embarcar em uma Kombi.
Lugar marcado sem comprovação
A falta de controle das prefeituras na hora de marcar um assento em veículos destinados a transportar pacientes do SUS é um dos fatores que colaboram com as irregularidades no serviço. Isso foi comprovado por teste feito por ZH e relatado por motoristas dos municípios. A reportagem entrou em contato com secretarias de 10 cidades do Interior e, por telefone, informando apenas um nome fictício, conseguiu reservar assento em vans e carros de cinco prefeituras: Caraá e Maquiné, no Litoral Norte, Picada Café, na Serra, Sentinela do Sul, no Centro-Sul, e Vale Verde, no Vale do Rio Pardo. O transporte foi desmarcado posteriormente, com antecedência.
Outros três municípios - Palmeira das Missões, no Noroeste, Progresso e Roca Sales, ambos no Vale do Taquari - informaram que o agendamento teria de ser feito pessoalmente e apenas dois - Canela, na Serra, e Encantado, no Vale do Taquari - exigiram cadastro prévio no sistema da secretaria ou número do cartão SUS para marcar o transporte. Os cinco, contudo, admitiram a possibilidade de levar passageiros para consultas particulares em Porto Alegre.
Os 10 municípios foram selecionados após ZH percorrer pontos em que os veículos ficam estacionados - nas praças Argentina, próxima à Santa Casa, e Major Joaquim Queiroz, perto do Hospital de Clínicas - e conversar com pacientes e motoristas, que relataram as irregularidades. Em cinco dias de pesquisa, foram contabilizados 156 veículos - quase metade deles eram vans - com placas de 96 municípios gaúchos e um catarinense.
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No ano passado, pacientes vindos de outras cidades realizaram 113,7 mil consultas na capital gaúcha, conforme dados da Central Estadual de Regulação Ambulatorial. O número, que corresponde a 444 atendimentos por dia útil, é quase 9% inferior ao registrado em 2013, na contramão da percepção de taxistas e comerciantes de Porto Alegre de que a ambulancioterapia tem aumentado ao longo dos anos. As especialidades mais agendadas em 2014 foram cardiologia, cirurgia geral, ginecologia, oftalmologia e oncologia.
Desvios no uso confirmados por motoristas
Funcionários públicos em sua maioria, os motoristas de carros, vans e ônibus das prefeituras denunciam o uso político da ambulancioterapia. Embora não tenham ingerência sobre o agendamento do transporte, são eles que acabam tendo de ouvir as queixas de pacientes e rodando mais do que o necessário para atender as demandas dos que estão de carona. Sem se identificar, um motorista que há 13 anos transporta pacientes de um município do Litoral Norte para Porto Alegre diz que a quantidade de caronas aumentou depois que o Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) deixou de exigir, no fim do ano passado, a lista de passageiros. Segundo o Daer, a medida foi adotada atendendo a pedido da Associação dos Municípios do Planalto, que questionou a competência do órgão para abordar esse tipo de veículo.
- Agora, botam muita carona junto. Por causa de voto, né? (...) Teria de haver fiscalização - afirma.
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Dos 23 passageiros que outro motorista, que também pediu para não se identificar, transportava, quase um terço tinha consulta particular ou iria visitar familiares na Capital. Também vereador em um município do Sul, ele admite que a Secretaria da Saúde faz "vista grossa" porque politicamente não interessa à prefeitura restringir o transporte:
- Tem muita clínica particular, IPE e gente que vai para casa de parente.
Sem limite para acompanhantes
No centro de Porto Alegre, uma clínica que realiza consultas e exames a preços populares vem atraindo clientela do Interior. Pelo menos cinco motoristas de veículos de prefeituras admitiram que, frequentemente, costumam deixar passageiros no local. Na lista que um deles mostrou, o nome da clínica particular destoava de outras instituições - que atendem pelo SUS - indicadas na relação como destino dos pacientes.
ZH foi ao endereço da clínica no último dia 3, segunda-feira. Durante uma hora, dois carros e uma van de prefeituras recolheram passageiros no local.
Além dos que utilizam o transporte da saúde pública para outras finalidades, um problema apontado é a quantidade de acompanhantes. Alguns municípios não estabelecem limite. A reportagem conversou com 12 condutores e verificou que, de 147 passageiros, 43 (quase 30%) faziam companhia para pacientes.
CONTRAPONTOS
Municípios nos quais foi possível agendar transporte sem comprovar se era paciente
- Caraá, Litoral Norte
Segundo o secretário municipal de Saúde, Djalmo Gomes Ribeiro, o agendamento do transporte não poderia ser feito por telefone, apenas pessoalmente e para usuários do SUS. Ele acredita que uma funcionária nova e que já não trabalha na secretaria "pode ter cometido um erro".
- Maquiné, Litoral Norte
Maria Rita Dalsotto, secretária de Saúde, informou que o transporte de pacientes é marcado pessoalmente, em um dos três postos, mediante comprovação da consulta. Ela negou a existência de irregularidade e disse que iria apurar quem foi o responsável pelo agendamento.
- Picada Café, Serra
A assessoria da prefeitura limitou-se a confirmar que o transporte pode ser agendado por telefone, nos casos de reconsulta, como forma de facilitar o atendimento aos moradores de localidades afastadas.
- Sentinela do Sul, Centro-Sul
A secretária municipal de Saúde, Keli Magdiel Rocha, disse que o transporte só deveria ser marcado pessoalmente para usuários do SUS e mediante apresentação de comprovante de consulta. Ela informou que iria averiguar porque a orientação não foi cumprida.
- Vale Verde, Vale do Rio Pardo
Conforme o secretário Paulo Meurer, devido à extensão territorial do município, a marcação de transporte por telefone é permitida, mas deveria ser exigido o número do cartão SUS. Meurer admitiu que, esporadicamente e quando há lugar, os carros da saúde levam pacientes para consultas particulares e convênios.
Municípios em que servidores admitiram levar passageiros para consultas particulares ou convênio
- Canela, Serra
Secretário de Saúde, Luciano Brasil Perottoni disse que a legislação municipal veda a prática, pois o transporte é destinado a pacientes do SUS. Perottoni não soube explicar o que pode ter acontecido nos agendamentos.
- Roca Sales, Vale do Taquari
Juarez Cofferri, secretário de Saúde, confirmou que, se tiver lugar sobrando, a van transporta moradores com consultas ou exames particulares e convênios. Segundo ele, como o terceirizado que faz o deslocamento ganha por viagem (R$ 480), o gasto acaba sendo o mesmo e "não há motivo para não ajudar a população".
- Encantado, Vale do Taquari
Conforme o secretário Marino Deves, os pacientes do SUS são "prioridade absoluta", mas, tendo vaga, diz não ver "contraindicação" no transporte de particulares/convênios. Ele ressalta que não há alteração no custo, já que o terceirizado recebe por viagem (R$ 730).
- Progresso, Vale do Taquari
Elizete Zuffo Guaragni, secretária de Saúde, admite que o município pode, eventualmente, se houver vaga no carro, transportar passageiros que têm consultas ou exames por convênio. Ela alega que a prática não é irregular nem representa gasto a mais para a secretaria.
- Palmeira das Missões, Noroeste
O secretário de Saúde, Paulo Fernandes, reconhece que ceder assentos em veículos que deveriam transportar apenas usuários do SUS é uma "distorção". Ele ressalta que não detectou aumento de custo e que a prática só ocorre quando há vaga. As viagens para a Capital custam R$ 500, e o município espera receber reembolso de R$ 8 mil do Ministério da Saúde. O secretário não soube informar se os passageiros com convênio/particular entram na conta.