O Ministério Público Federal está com uma tarefa nada fácil em Santa Maria: conciliar a legislação municipal e os interesses dos empresários com os direitos e as necessidades dos indígenas. É que, desde 2010, a prefeitura não permite a venda de produtos industrializados nas ruas e no Centro por quem quer que seja. Mas, um grupo de Caingangues diz que só com o comércio de artesanato não consegue sobreviver. A situação, que já ocorreu em outros tempos e voltou a ser tratada pelos órgãos municipais e federais em meados do ano passado, ainda não teve uma solução por aqui. O exemplo pode vir de outras cidades gaúchas que conseguiram resolver ou contornar a questão.
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Depois da realocação dos camelôs, ambulantes e artesãos no Shopping Independência em junho de 2010, a prefeitura e as comunidades Caingangues e Guaranis residentes em Santa Maria entraram em acordo: comércio indígena no Centro, só de artesanato. Porém, com o passar dos anos, mais famílias Caingangues de Terra da Guarita, em Tenente Portela, noroeste do Estado, que antes vinham para Santa Maria apenas na época da Páscoa, acabaram se estabelecendo e trazendo consigo o comércio informal de volta para a área central.
Para tentar resolver a questão, a prefeitura encaminhou o caso para o Ministério Público Federal (MPF) que instaurou um inquérito civil em agosto de 2014. No começo deste ano, a Fundação Nacional do Índio (Funai) também passou a atuar na intermediação. Algumas sugestões surgiram, mas, ainda não houve uma solução definitiva.
- Temos uma solução intermediária que seria customizar os industrializados com temas da cultura indígena, o que diferenciaria os produtos dos vendidos no comércio local. Isto está sendo estudado - explica a procuradora da República Bruna Pfaffenzeller.
Concorrêicia seria desleal
A procuradora do município, Clarissa Pillar, concorda que "para um entendimento, é preciso que ambas as partes cedam":
- O município cede espaço público para que eles (indígenas) comercializem artesanato, porque é uma construção histórica. Mas, a partir do momento que entra a venda de industrializados, há uma concorrência desleal com os comerciantes regularizados. Isso, o município não aceita.
O chefe do Setor de Gestão Ambiental e Territorial da Funai em Passo Fundo, Mauro Leno, diz que a Funai está orientando os índios sobre o comércio:
- O trabalho tem sido de conscientização dos indígenas para que seja só artesanato. Os municípios não têm obrigação de aceitar outro tipo de produto sendo vendido. Na Região Metropolitana, as comunidades começaram customizar os materiais com motivos indígenas.
Quanto à fiscalização, Leno diz que "não existe inimputabilidade dos indígenas".
- Dentro do município, Brigada Militar e o poder municipal podem agir. Mas sempre é bom que os casos sejam acompanhados por MPF e Funai - esclarece.
Prefeitura, representantes das comunidades Caingangues, Funai e MPF têm outra reunião marcada para o dia 24 deste mês. Ainda está em andamento um processo de cadastramento das famílias Caingangues que moram ou vêm fazer comércio em Santa Maria.
Em Caxias, espaço é restrito
Em Caxias do Sul, há alguns anos, Caingangues de Farroupilha, cidade vizinha, ocupavam as calçadas na Avenida Júlio de Castilhos, uma das principais de circulação de pedestres no Centro. Havia contestação por parte dos comerciantes e da população porque parte dos produtos não eram de artesanato, e sim, industrializados. No final de 2013, a prefeitura realizou uma ação de fiscalização e apreendeu produtos dos indígenas. Ministério Público Federal e Funai questionaram a ação e foi feito um acordo.
Hoje, há cinco pontos na Avenida Júlio de Castilhos em que os indígenas podem vender. Não foi entregue nenhum tipo de alvará, apenas crachás que identificam os vendedores. Eles podem vender produtos industrializados.
Em Farroupilha, houve acordo
Cerca de 30 famílias Caingangues moram em Farroupilha, município que fica a pouco mais de 19 quilômetros de Caxias do Sul. Por lá, apesar de combater o comércio informal, segundo o secretário de Finanças, Benami Spilki, a prefeitura resolveu adotar "a política da boa vizinhança" com os indígenas. Funciona como uma espécie de acordo de cavalheiros, não documentado e sem o intermédio do Ministério Público Federal. Os índios não vendem na área azul, no Centro, mas comercializam livremente no Santuário de Nossa Senhora do Caravaggio (foto), área particular e ponto turístico do município.
- Há cerca de seis meses, apreendemos produtos trazidos do Paraguai que eles (índios) estavam vendendo na área azul. A Funai pediu que devolvêssemos. Combinamos que entregaríamos, se eles não ocupassem mais o local. Mas, no Santuário do Caravaggio eles vendem de tudo, e é complicado impedir - diz Spilki. O comércio pelos indígenas só mudou de endereço.
Em Gramado, só artesanato
Em Gramado, há semelhanças e diferenças do caso de Santa Maria. Mas a questão central é a mesma: a venda de produtos por parte dos indígenas. A diferença é que, lá, esse comércio é sazonal, ocorre em dois momentos específicos do ano: durante o Festival de Cinema e na época do Natal Luz. Em Santa Maria, o comércio, hoje, é permanente.Em Gramado, o assunto é discutido há cerca de seis anos.
- Eles vendiam produtos industrializados, o que está fora da lei - diz Bruno Irion Coletto, que atuou como procurador-geral interino de Gramado até terça-feira.
A prefeitura vai construir, por licitação, às margens do Lago Negro, cabanas fixas para o comércio indígena. Enquanto isso, os índios estão em local provisório. Eles não podem comercializar em outro local e nem vender industrializados.
O que diz a lei municipal:
- O artigo 5 do Decreto Executivo 065, de 7 de junho de 2010, diz que "fica terminantemente proibida a prática do exercício da atividade de comércio nas modalidades anteriormente denominadas camelôs, ambulantes e artesãos nas vias e logradouros públicos
- O texto diz ainda que "a prática da atividade de comércio nas vias e logradouros públicos sujeitará o infrator à apreensão do(s) equipamento(s) e objeto(s) que constituírem a infração", combinada com a penalidade de multa
O que diz a lei federal:
- Até a constituição de 88, existia o exercício da tutela, os índios eram considerados, como menores de idade, não responsáveis pelos seus atos. A Funai os representava legalmente. A constituição derrubou esse papel de tutela, dando autonomia aos povos indígenas. Como eles vivem em áreas da União, nesses locais, a competência é da Polícia Federal. Mas, fora da terra indígena, nas cidades, nada impede atuação da Brigada Militar (em casos de distúrbios) e da fiscalização municipal (os fiscais não tem ingerência sobre os produtos de artesanato, mas podem apreender outras mercadorias); se houver prisão, o caso é encaminhado à Polícia Federal, que tem competência para investigar
A negociação
- O Ministério Público Federal instaurou inquérito civil, em 6 de agosto de 2014, para "apurar ocorrência de suposto comércio ilegal de produtos industrializados importados por indígenas no Calçadão e sobre o Viaduto Evandro Behr" em Santa Maria
- O pedido partiu da Procuradoria-Geral do Município. Segundo a prefeitura, a fiscalização estava com dificuldades de retirar as mercadorias de circulação
- Após a realocação de camelôs, ambulantes e artesãos no Shopping Independência, em junho de 2010, prefeitura havia acordado com os indígenas das comunidades Caingangue e Guarani que moram no município que apenas produtos de artesanato seriam vendidos no Centroz Com o passar do tempo, o comércio de industrializados voltou à área central pelos índios Caingangue de Tenente Portela
- Em 11 de julho de 2014, ocorreu a primeira reunião entre MPF, comunidade indígena Caingangue da Terra Indígena Guarita, de Tenente Portela, e prefeitura. O MPF determinou que um técnico fosse ao Centro para verificar o fato
- À época, o MPF recebeu um e-mail de um comerciante relatando ameaças e prejuízos decorrentes da venda por parte dos indígenas
- Um técnico do MPF fez fotos, em 23 de setembro de 2014, que comprovaram o tipo de comércio
- A segunda reunião ocorreu em 18 de dezembro de 2014. Um representante da comunidade indígena disse que falava em nome de 15 famílias, e que, de fato, além de produtos indígenas, comercializavam também, para a sua subsistência, produtos industrializados adquiridos com nota fiscal em São Paulo e Porto Alegre
- Em 28 de janeiro de 2015, uma nova reunião contou também com a presença do coordenador regional da Funai, Roberto Perin, de representantes do comércio local e da ONG Gapin. Foi proposta a colocação de 10 bancas fixas no Calçadão e seu entorno, com um sistema de cadastro por família. A fiscalização nas bancas dos indígenas foi suspensa até o término das tratativas
- O MPF recebeu mais uma denúncia de comerciante local
- A prefeitura ao MPF que o espaço público oferecido aos indígenas é para comércio de produtos artesanais; que não é possível conferir a eles uma autorização especial para a comercialização de industrializados; e que não estimularia esse tipo de venda
- Na última reunião, ocorrida em 26 de junho deste ano, foi proposto pela Funai que os produtos industrializados sejam customizados pelos indígenas para possibilitar a comercialização, o que está sendo avaliado tanto pelos indígenas quanto pela prefeitura. A próxima reunião foi marcada para 24 de julho