Em fevereiro de 1943, a família da holandesa Nanette Konig foi levada pelos alemães para o campo de Bergen-Belsen. Libertada pelo exército britânico dois anos depois, em abril de 1945, a adolescente, então com 15 anos, não tinha razões para sorrir. Doente, pesando 31 quilos, sem casa e sem família - os pais e os dois irmãos haviam sido mortos pelos nazistas -, agradecia apenas por estar viva.
- Não tem como apagar isso. Fica na memória para sempre - disse Nanette, 86 anos, durante a comemoração dos 49 anos da Escola Estadual Anne Frank, na manhã desta terça-feira (5), em Porto Alegre.
Amiga e colega de aula da própria Anne Frank, morta em Bergen-Belsen em 1945 e mundialmente famosa após a publicação de seu diário, escrito durante a ocupação nazista em Amsterdã, a hoje octogenária contou a cerca de 200 estudantes o drama por que passou durante o regime de Adolf Hitler. Em uma hora, lembrou as privações e dificuldades enfrentadas desde a invasão alemã, em maio de 1940, até o começo das deportações para campos de extermínio, em julho de 1942.
Após a guerra, a holandesa permaneceu três anos hospitalizada, até recuperar-se das sequelas físicas de dois anos de confinamento. Sob o jugo nazista, além de sofrer constantes maus-tratos, alimentava-se mal - "se havia comida, era pão e sopa de nabos" - e vivia em péssimas condições sanitárias.
- Quando os britânicos chegaram e nos deram alimentos, muitos dos que comeram acabaram morrendo, porque não tinham condições de digerir a comida - lembrou.
O adeus pela tela de arame farpado
A holandesa viu a amiga pela última vez em janeiro de 1945, em Bergen-Belsen. Separadas por uma tela de arame farpado, as duas não puderam trocar uma palavra sequer. Anos mais tarde, Nanette tomou conhecimento do diário deixado por Anne, narrativa que segundo ela pode contribuir "para que o holocausto não seja esquecido".
Em 1949, ao deixar o hospital, a jovem holandesa foi para a Inglaterra, onde fez curso de secretariado bilíngue. Meses depois, estava empregada em um banco. Em 1953, depois do casamento, mudou-se com o marido para o Brasil. Natural da Hungria, John, assim como ela, perdera os pais durante a guerra e via nos tios que moravam em São Paulo uma âncora pra recomeçar a vida.
Hoje, mais de seis décadas de o casal desembarcar no Brasil, Nanette dedica parte de seu tempo à tentativa de manter viva a memória do holocausto. Na palestra desta terça, lembrou que a amiga Anne não conseguiu concluir os estudos, mas manteve o foco na leitura, como forma de aprimorar-se e entender o mundo em que vivia. E sugeriu que os estudantes procurem seguir o mesmo roteiro, para evitar a ocorrência de novos holocaustos.
- Vocês precisam estar informados sobre o que acontece no mundo. Quando se diz nunca mais pode se admitir algo como o holocausto, "nunca mais" são palavras vagas. É preciso reconhecer e entender os sinais de perigo - afirmou Nanette.
Quem foi Anne Frank
Adolescente de origem judaica, Anne Frank morreu ao 15 anos de idade, em fevereiro de 1945, no campo de prisioneiros nazista de Bergen-Belsen. Natural de Frankfurt, ela mudou-se com a família da Alemanha para a Holanda em 1933, ano em que Adolf Hitler tornou-se chanceler alemão. Quando a Holanda foi ocupada, temendo a deportação para campos de extermínio, os Frank passaram a viver escondidos no sótão de um edifício, em Amsterdã. A partir de 1942, Anne registrou seu cotidiano no esconderijo em um diário. Descobertas pelo seu pai depois da guerra, as anotações transformaram-se no "Diário de Anne Frank", um dos livros mais famosos do século 20.
Confira o vídeo:
ENTREVISTA: Nanette Konig
"Não deve ser esquecido nunca"
Antes da palestra, a sobrevivente do holocausto concedeu entrevista a Zero Hora. Confira a seguir:
Quais as principais lembranças que a senhora tem do convívio com Anne Frank?
Éramos muito jovens, mas nos dávamos conta de que era uma situação muito precária. A classe toda se dava muito bem. Até hoje, se ligo para um deles, ele me atende, a qualquer hora do dia ou da noite. Mas ela (Anne) realmente tinha o dom de escrever. E o fato é que o pai dela se interessou pelo diário - ele leu o diário e falou que não reconhecia a sua filha - e fez com que fosse usado com fins de ensino. Queria que fosse possível recontar a história do holocausto através desse diário. E conseguiu.
Como a senhora conseguiu se salvar?
Não sei. Por acaso, né? Quem não foi assassinado e era mais resistente, conseguiu sobreviver. Não tem explicação.
Desde a guerra, mudou a forma como o mundo lida com as diferenças raciais e religiosas?
Acho que não mudou nada. A minha função pessoal é mostrar que o holocausto não aconteceu por acaso. Foi muito bem planejado. E teve um objetivo: eliminar o povo judaico. E isso não deve ser esquecido nunca.
Como a senhora vê o negacionismo, a tentativa de desmentir a veracidade e a dimensão do holocausto?
Não convém lhes lembrar. Tem certos grupos que não querem lembrar. Por exemplo: os países árabes, que também expulsaram os judeus, não querem nem saber do holocausto. Os judeus tiveram de abandonar esses países e deixar tudo para trás. E nunca foram ressarcidos. Nunca. Não foi como o holocausto, mas o fato é que eles também perseguiram os judeus. E hoje, para eles, convém negar o holocausto.
Entre 1915 e 1917, cerca de 1,5 milhão de armênios morreram durante a Primeira Guerra, em um massacre liderado pelo então Império Turco-Otomano. A negação do holocausto é semelhante ao que ocorre na Turquia, que nega o genocídio dos armênios?
Absolutamente parecida. E Adolf Hitler usou essas marchas de morte, que vieram das perseguição aos armênios. Ele percebeu que os culpados nunca foram levados à Justiça e pensou "agora, posso fazer o que bem entender".
A senhora teme que a negação do holocausto e do genocídio armênio possibilite a ocorrência de algo semelhante no futuro?
Espero que não. Acho que o papel da comunidade judaica é justamente este. E tem muitos trabalhos, não só da minha parte, sendo feitos sobre este assunto.
Tendo sobrevivido ao holocausto, qual a sua missão hoje?
É uma obrigação. Quem, por acaso, sobreviveu, tem essa obrigação. Não pode dizer "estou tão traumatizado que não posso falar". E daí? E os outros que ficaram para trás, que não podem mais falar? Eles têm de ser representados, lembrados, para sempre.