A luta de um casal para recuperar relação de afeto com um menino de três anos - laço rompido por decisão judicial - mostra que os programas de apadrinhamento afetivo carecem de legislação específica no país. A iniciativa, cujo propósito é oferecer vivência familiar a crianças residentes em casas de acolhimento, ainda está sujeita a interpretações subjetivas de juízes e promotores da Infância e Juventude.
Ana e Paulo (os nomes reais foram preservados a pedido do casal) começaram, em outubro do ano passado, um trabalho social em um abrigo na zona sul de Porto Alegre. Entre dezenas de pares de olhos aflitos, um em especial os encantou: o de Marcelo, à época com três anos. Quiseram apadrinhá-lo. Preencheram formulários, foram atendidos por psicólogos, apresentaram a documentação necessária e foram autorizados a ser os "dindos".
Marcelo passava os fins de semana com os padrinhos, que transformaram uma peça vazia da casa em um quarto temático de Mickey. Passeios e brincadeiras com as crianças da vizinhança divertiam o guri - em cujo registro não constava o nome do pai, só o da mãe, viciada em crack. Participou de festas de Natal e Ano Novo pela primeira vez em ambiente familiar. Quando chegou janeiro, e com ele as férias de verão, Ana e Paulo pediram autorização judicial para levá-lo junto a uma viagem ao Nordeste.
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- A juíza não só negou o pedido como também suspendeu sumariamente o apadrinhamento, proibindo-os de ver o Marcelo - diz a advogada Claudia Abreu, que defende o casal perante a Justiça.
Aconteceu que a casa-lar onde Marcelo está abrigado não tinha autorização judicial para ter o seu próprio programa de apadrinhamento afetivo - algo que, segundo a advogada, não era de conhecimento do casal.
Em Porto Alegre, a única instituição habilitada para tal é o Instituto Amigos de Lucas, por meio de um termo de cooperação com Governo do Estado, Judiciário e Ministério Público (MP). A casa-lar não quis se manifestar sobre o caso. Nem a juíza - já que o processo tramita em segredo de justiça.
- Que a viagem foi negada, a gente entende. Mas não compreendemos porque foi feita esta ruptura tão radical, já que ele estava recebendo afeto de uma família pela primeira vez. Sempre tivemos o cuidado de dizer que éramos dindos, não pais. Mas houve um vínculo muito grande entre nós. Estamos sofrendo e temos certeza que ele também, pois deve estar se sentindo, mais uma vez, abandonado - contou Ana, em nome do casal.
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De acordo com o regulamento do Instituto Amigos de Lucas, Marcelo não poderia ter sido apadrinhado por dois motivos: ele foi destituído do poder familiar em dezembro, tornando-se apto para a adoção (e crianças que estão no Cadastro Nacional de Adoção não poderiam ser apadrinhadas); e é menor de cinco anos, o que a inclui no grupo de crianças com muita chance de serem adotadas. O apadrinhamento seria dirigido a crianças e adolescentes com possibilidades remotas ou inexistentes de adoção.
- Criança pequena tem que ser adotada, e não apadrinhada - decreta a presidente do Amigos de Lucas, Rosi Prigol.
Porém, de acordo com o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFam) e autor do livro Dicionário de Direito de Família e Sucessões, a adoção já é considerada tardia quando a criança tem mais de dois anos de idade, visto a preferência dos adotantes por recém-nascidos.
Regras não são uniformes
Os programas de apadrinhamento afetivo, embora reconhecidos como iniciativas louváveis de acolhimento a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, não têm base legal. Os termos de cooperação firmados entre as instituições sociais e órgãos governamentais criam brechas, segundo o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do IBDFam:
- Se não há legislação própria, vai de acordo com o posicionamento subjetivo de cada julgador, que deve ser imparcial, mas nunca é neutro. Pode haver disparidade nas interpretações desses regulamentos, algo que acaba prejudicando a proteção da criança.
Por exemplo: o programa do Instituto Amigos de Lucas, ativo desde 2002, afirma que os pretendentes a "dindos" não podem se inscrever no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). No entanto, para o IBDFam, essa restrição não está formalizada.
- Seria interessante se o apadrinhamento fosse uma ponte para a adoção. Por que não, se são os padrinhos que se tornam a referência de afeto para aquela criança? - questiona Pereira.
Outra disparidade é entre a idade mínima que o apadrinhado deve ter. No Amigos de Lucas, é de cinco anos. No Abrigo João Paulo II, que está desenvolvendo um projeto-piloto de apadrinhamento (também por meio de termo de cooperação entre Justiça e MP), este limite se amplia para sete.
É uma medida para priorizar, no apadrinhamento, crianças que não têm muita chance de adoção. Do total de adultos inscritos no CNA, 20% aceita pequenos de até três anos de idade - o percentual cai para menos de 5% quando eles ultrapassam os cinco anos.
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- O apadrinhamento é fundamental para a criança que não é adotada. É uma oportunidade de colocá-la em convivência social para além dos muros da casa de acolhimento. Ninguém quer restringir o programa, queremos ampliar. Mas já que não há lei, é preciso respeitar esses regramentos mínimos, para que a criança esteja protegida - diz a promotora de Justiça da Infância e da Juventude Cinara Braga.
Os regramentos a que se refere dizem respeito, também, a oficinas de capacitação para os candidatos a padrinhos. Os interessados em escolher uma criança para ajudá-la nas tarefas do colégio, levar ao médico, ir ao cinema e brincar fora do ambiente do abrigo são treinados a não provocar a ilusão de que são eles os novos pais. Mora aí o perigo dos apadrinhamentos "informais":
- Às vezes, só o fato de alguém tirá-la do abrigo aos domingos para passar o dia fora já cria um tipo de vínculo que, se rompido, pode trazer ainda mais prejuízo à criança, justamente por sua estrutura frágil que facilita uma relação de dependência - alerta a procuradora de Justiça e membro da comissão organizadora do programa de apadrinhamento afetivo da Amigos de Lucas, Maria Regina de Azambuja, também professora da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
De acordo com ela, todos os abrigos de Porto Alegre são convidados anualmente a integrar o programa - poucos aderem. De qualquer forma, o caso da casa-lar onde vive Marcelo não é visto como irregular por alguns promotores.
- Não há uma obrigatoriedade de que a casa busque a autorização judicial para seu programa de apadrinhamento. Eles agiram de boa-fé, assim como o casal. Hoje temos um vínculo afetivo que foi rompido e que certamente está prejudicando o desenvolvimento emocional do menino - afirma um deles.
E como na Constituição Federal está previsto que, para além de qualquer regra, o que deve ser levado em conta em primeiro lugar é o melhor interesse da criança, Ana e Paulo têm esperança de um dia poderem voltar a levar Marcelo ao McDonald's, onde tanto se divertia.
- A fonte do Direito não são só as leis, são os costumes, os princípios. Tomar as regras como fetiche e tornar rígidas as formalidades pode levar a um esquecimento da essência, que neste caso, no fim das contas, é o que seria melhor para a criança - opina Pereira, do IBDFam.
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