Dicas para alunos efetuarem negócios irregulares, professores contando com empolgação experiências pessoais de agressividade no trânsito, animosidade contra motociclistas e futuros profissionais do transporte público revelando a intenção de enganar passageiros.
Situações como as relatadas acima foram documentadas por ZH durante uma semana, período em que a reportagem frequentou o curso de formação profissional para condutores de táxi, no Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat), no bairro Humaitá, em Porto Alegre.
Para obter o chamado "carteirão" da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), que autoriza o exercício da função de taxista na Capital, é obrigatório fazer o curso de formação do Senat. É a primeira e mais importante das etapas. Sem isso, não há carteirão.
Na prática, a EPTC, vinculada à prefeitura, terceiriza ao Senat a aplicação do curso. São 45 horas-aula, ao custo de R$ 160, pagos pelo aluno. Fazem parte do aprendizado os módulos qualidade em atendimento, cidadania, legislação de trânsito e direção defensiva, entre outros. No último dia, é aplicada uma prova com 20 questões objetivas.
Por mês, o Senat forma cerca de cem profissionais de táxi. São 25 alunos por turma, uma por semana. Matriculada regularmente, a reportagem de ZH frequentou o curso entre 23 e 27 de fevereiro, identificando-se apenas como alguém que buscava no táxi uma nova oportunidade de trabalho.
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Durante os cinco dias, o que aconteceu nas aulas ajuda a explicar a má fama de parte dos taxistas, que acabam denegrindo a imagem da categoria e prestando serviços de qualidade questionável, e o caos no trânsito em Porto Alegre, tomado por atitudes agressivas. Veja a seguir os principais fatos registrados por ZH em vídeo e áudio.
DIA 1 - Em seis minutos, aula sobre como derrubar um motoboy
O primeiro dia de curso foi dedicado ao módulo de direção defensiva com o instrutor Jayson Machado. Uma das características dos educadores do Senat é utilizar parte do tempo de aula para contar experiências pessoais no trânsito. Jayson dedicou seis minutos para relatar um atrito que sofrera recentemente com um motoboy na Avenida Carlos Gomes. O trânsito estava parado pela tranqueira, e o motorista do veículo ao lado do instrutor fez uma leve manobra que aproximou os carros, quase tocando espelho com espelho. Isso impedia que os motociclistas utilizassem o chamado corredor (vão entre os carros) para driblar o congestionamento. Foi quando Jayson percebeu a aproximação agressiva de um motoboy.
- Daqui a pouco ele (motoboy) trancou o dedo na buzina: biiiiiiiiippp. Quando ele trancou o dedo na buzina, ele levantou a perninha dele. Tipo assim, dizendo "vocês não têm noção, por que não deixam o corredor para mim? Agora azar é o teu, eu vou arrancar o teu espelho". Só que ele iria arrancar o espelho de um cara que não cometeu nenhum erro. Se ele queria arrancar espelho, que arrancasse o do outro cara, porque o erro não tinha sido meu. Aonde eu quero chegar com isso? Que até para arrancar espelho tu tem de ser malandro, meu. Viu a burrice desse motoboy? Ele me avisou, ele já veio com o pé levantado e a mão na buzina, lá detrás. Baita de um trouxa - detalhou Jayson, arrancando risos da turma.
Com os alunos curiosos, ele deu continuidade ao relato, listando uma série de ações violentas que poderia tomar no desenlace do conflito.
- Eu pensei comigo: esse louco vai arrancar o meu espelho mesmo? Esse louco vai me azarar, mesmo eu não tendo culpa nenhuma? Não, ele não vai me azarar. Já que ele quer me azarar, eu sou mais malandro do que ele. O que tu acha que eu, um professor, fiz aqui? Ele levantou o pé e ia arrancar o meu espelho. Letra A: abri a porta. Ele "dele" (bateu) na minha porta. Eu tenho seguro e ele pagou a franquia para colocar uma porta nova ali. Letra B: abri o vidro, coloquei o braço para fora e fiz ele parar. Letra C: ah, tu vai me foder? Então eu vou te foder primeiro. Botei uma primeira e botei a frente do meu carro e fechei ele. Ele deu no meio dos dois e rolou no chão. Motoboy trouxa, né? Esse louco deu sorte que encontrou na frente dele um professor - relatou Jayson, entre gargalhadas dos alunos.
No final, o instrutor disse que apenas apertou um botão do painel que recolhe o retrovisor do carro, deixando de lado as alternativas que causariam danos físicos ao motoboy.
Não houve um apontamento da necessidade de convivência pacífica entre os diferentes no trânsito. A cartilha distribuída aos alunos pelo Senat diz, na página 62, que é função do taxista "tratar com educação, polidez e urbanidade os passageiros, os agentes de órgãos fiscalizadores, os demais taxistas, os motoristas, os transeuntes e o público em geral".
DIA 2 - Instrutor diz como comprar placa de táxi, negócio ilegal
Os turnos da manhã e da tarde foram reservados para aulas com o instrutor Mauro Alcântara sobre legislação de trânsito e de transporte. Nos primeiros minutos, o educador pediu que os alunos se apresentassem, informassem há quanto tempo têm a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e explicassem o motivo de terem escolhido o táxi como profissão.
Um jovem que estava entre os primeiros consultados afirmou que iria "comprar" um táxi em sociedade com o cunhado.
Como as placas são uma concessão pública da prefeitura, a negociação, seja por venda ou aluguel, é proibida. A própria cartilha do Senat diz, na página 74, que "alugar, alienar ou negociar a permissão" é considerada uma "infração incompatível com a prestação do serviço", o que resulta em multa de 2 mil UFMs (cerca de R$ 6,6 mil) e revogação do direito de explorar o táxi.
É uma falta que está acima das "infrações gravíssimas".
Mesmo sabendo da irregularidade, o professor deu dicas para que o aluno efetuasse a transação.
- Beleza, meu. Dá grana. Cuida com essa história de comprar táxi porque, oficialmente, não pode. Comprar e vender táxi é tudo contratinho de gaveta, por debaixo dos panos. Cuida que tem de fazer um negócio bem amarradinho, porque senão daqui uns anos chega um neguinho e diz: "Me dá que é meu (a placa). Faz um negócio bem feito. Tá, meu velho?" - orientou Mauro.
Instantes depois, um aluno que chegou atrasado foi convidado a fazer a apresentação e disse que "compraria placas" em parceria com o padrasto. O instrutor repetiu o alerta:
- Já te digo o que eu disse para os guris antes de tu chegar: não existe compra de placa, não existe aluguel de placa, é tudo por debaixo dos panos, tudo contrato de gaveta. Então tu faz bem amarradinho, contratinho bem feitinho porque, de uma hora para outra, o cara pode chegar e dizer "me dá aqui que é meu". E aí tu fica com um carro cor de laranja, né, todo mundo sabe que já foi táxi, e até para vender o carro é difícil.
Mais tarde, o instrutor contou à turma um episódio de discussão de trânsito na zona sul da Capital em que ele, depois de ser ofendido, ameaçou agredir uma mulher.
Primeiro, Mauro relatou que a mulher lhe proferiu "trocentos" xingamentos e sinais. Indignada, a condutora teria aberto o vidro para ofender o instrutor. Foi nesse ponto que as coisas esquentaram, conforme detalhou Mauro.
- Ela me disse: "O que que é, magrão? Se tu falar alguma coisa, vou te dar umas porradas". Eu comecei a rir e ela perguntou se eu não estava levando fé. Eu só coloquei a minha cabeça para fora e disse a ela: se tu te comportar que nem homem, vai apanhar que nem homem. Ela levantou o vidro na hora. Era só o que me faltava, né, cara, eu estar completamente certo e ela completamente errada, me enchendo de desaforo, e eu ainda apanhar da mulher - gabou-se.
Nas aulas do Senat, os alunos deveriam receber orientações para se afastarem de discussões e brigas de trânsito, conforme trecho da cartilha do curso, exatamente o oposto do que fez o instrutor.
DIA 3 - Minoria dos alunos disse que iria enganar passageiros
Pela manhã, os alunos assistiram a aulas do módulo qualidade com a instrutora Cláudia Feijó. Nesse dia, episódios ilustraram o comportamento de um grupo de pelo menos sete futuros taxistas dentre os 25 alunos da turma. No decorrer das aulas, foram diversas as afirmativas desse time minoritário de alunos que, diante da professora e dos colegas, garantiam que iriam enganar passageiros, alterar o taxímetro e portar porretes ou "amansa-louco" para agredir e ameaçar pessoas que causassem problemas. Em geral, os instrutores não reagiam às confissões. Na quinta-feira pela manhã, um episódio foi emblemático.
Cláudia pediu que os alunos se apresentassem. Um deles afirmou que já trabalha há três anos como taxista em Porto Alegre. Como somente agora fazia o curso para providenciar o carteirão, ele revelou que atuava utilizando o documento de um irmão gêmeo. A instrutora, inicialmente, deu um tratamento mais ameno ao caso.
- Foragido da EPTC (referência ao fato de ele trabalhar irregularmente)? Eu não ouvi isso. Eu escutei, mas não processei. O teu irmão confia em ti, hein? - disse a instrutora.
Ela deu continuidade à aula e, instantes depois, explicava que fidelizar clientes idosos, com um trabalho dedicado e honesto, era um bom caminho para aumentar a renda no táxi.
- Pessoas que tu dá um bom atendimento, tu vai ter retorno. Dá para tirar uma boa grana, aquele que quer trabalhar, não precisa roubar de ninguém - afirmou.
O aluno que já tinha admitido trabalhar ilegalmente, tão logo percebeu a brecha após a frase "não precisa roubar de ninguém", disparou:
- Às vezes, né.
Os risos foram generalizados.
- Fugitivo da EPTC, usa o carteirão do irmão e acha que às vezes pode roubar? - reagiu a professora.
- Claro que dá - retrucou o aluno.
Cláudia, então, mudou o tom. Para não bater de frente com o rapaz, passou a recordar dois casos que já tinha presenciado de pessoas que entraram no curso alardeando à turma que iriam roubar clientes. Um deles, contou, queria usar o espaço da aula para ensinar a adulterar o taxímetro, o que ela disse ter impedido. O outro era funcionário do pai e lhe aplicava golpes. Ao final, em tom de reprimenda e desabafo, falou:
- Isso é preocupante. Quando a pessoa perde a vergonha, o que tu espera? - lamentou.
Questionada pelo repórter, que se passava por aspirante a taxista, sobre as possíveis providências contra maus alunos, a professora respondeu que não tem poder para reprovar pessoas, mesmo aquelas que confessam atitudes classificadas como infrações na lei.
- Eu não tenho o poder (de reprovar). Eu posso dar o nome lá, o pessoal tem contato com a EPTC - resumiu, explicando que já havia denunciado casos semelhantes à coordenação do curso.
CONTRAPONTOS
Vanderlei Cappellari, diretor-presidente da EPTC
Espero que o Sest-Senat tome medidas duras de correção. Ficou demonstrado que pessoas entram na atividade profissional com a intenção de ludibriar o cliente. É extremamente preocupante o professor dar dicas de ilegalidade, sobre como burlar a lei que proíbe comercialização de placa. Ele precisa ser eliminado da função de instrutor. E também é dado exemplo de como ser mau motorista e provocar acidente com risco de morte. Sem condições de ser um instrutor de direção defensiva.
Carlos Becker Berwanger, diretor da unidade do Sest-Senat
O Senat é uma instituição séria. Temos programa de acompanhamento dos instrutores justamente para não acontecerem essas coisas, mas a gente não está livre, temos quase cem funcionários. Todas as providências vão ser tomadas, inclusive as legais e jurídicas. Quando eu falo em providências, é no geral, em toda a equipe de colaboradores. Vou tomar atitudes para que esses fatos não se repitam. Condeno veementemente a atitude de dois instrutores. Isso me surpreendeu.