Muito antes da comida de rua se tornar tendência mundial com os food trucks - restaurantes sobre rodas com pratos elaborados a preços mais acessíveis -, ambulantes que oferecem refeições rápidas já dominavam os centros e bairros apenas com a divulgação boca a boca. Em Porto Alegre, o primeiro surgiu em 1959: o Zé do Passaporte, no Bairro Bom Fim.
Hoje, segundo a Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (Smic), são 89 ambulantes autorizados a vender diferentes tipos de lanches, de cachorro-quente a pão de queijo. O Diário Gaúcho conversou com dois dos mais antigos ainda em atividade na Capital e conta as histórias destes precursores do food truck.
Lucíria carrega o trabalho no braço
Faça chuva ou sol, todas as manhãs Lucíria de Oliveira, 47 anos, segue uma rotina árdua antes de atender os clientes na Rua Vieira de Castro, no Bairro Farroupilha: por cerca de 200m, carrega no braço um carrinho de metal cujo peso ela desconhece. Ambulante há duas décadas, com alvará de licença há 16, Lucíria deixou a lida como diarista para se tornar, garante, a primeira a vender lanche rápido no trecho:
- Iniciei no carrinho com cinco pães e cinco salsichas. Na primeira semana, não vendi nenhum lanche. Mas persisti. Depois que o primeiro experimentou meu cachorro-quente, só aumentei a clientela - conta, faceira.
Por dia, Lucíria atende a cerca de 70 pedidos, desde o tradicional hot-dog até a tapioca, especiaria mais recente que a ambulante aprendeu a fazer para atrair novos clientes. É o caso da servente de limpeza Patrícia da Silva, 38 anos, moradora de Viamão, que antes de fazer fisioterapia no bairro passa no carrinho para comer tapioca de frango e bebericar o famoso cafezinho de Lucíria.
- Ela é como uma psicóloga. Ouve as histórias dos clientes e sempre tem conselhos para dar. É um bom coração - elogia Patrícia.
Natural de Lajeado, Lucíria tornou-se ambulante por sugestão do marido, falecido há dois anos e com quem foi casada durante 24 anos. José era o braço direito dela e quem a ajudava a transportar, diariamente, o trabalho do estacionamento até o ponto.
- Estou sozinha para tudo. José era muito conhecido no bairro e foi o responsável por plantar a pitangueira da rua. Hoje, é vendo ela que mato a saudade do meu marido - suspira.
Nova moda ajudou
Com as dificuldades impostas pela rotina solitária, Lucíria pensa em deixar o carrinho para vender os lanches em prédio próprio. Por enquanto, garante que ama a função, mesmo sem jamais ter tirado férias em duas décadas. De segunda à sexta-feira e aos domingos, sempre das 9h30min às 18h30min, é dentro do carrinho que a ambulante pode ser encontrada. E ela garante:
- Se os lanches andavam numa maré baixa, os food trucks vieram para reforçar até a minha clientela. As pessoas voltaram a comer na rua.
O caminho para ser um ambulante em Porto Alegre
* Os ambulantes que desenvolvem atividade com alimentos precisam (além de outros requisitos legais), apresentar o certificado de conclusão do Curso de Boas Práticas em Serviços de Alimentação, oferecido por entidades como Senai e Senac. Neste curso, eles recebem a orientação sobre como proceder em termos de vestimenta e outros detalhes.
* Os valores das taxas variam conforme o tipo de atividade.
* Em Porto Alegre, estão liberados 24 alvarás para venda de cachorro-quente, 15 para churros, 18 para pipoca, seis para cachorro-quente em towner, nove para churrasquinho, três para pão de queijo e 14 para trailer com lanches rápidos.
*O Alvará para Ambulantes é uma licença emitida pela Smic para atividades comerciais e de prestação de serviços exercidas em espaços públicos, que sejam itinerantes, fixas ou transitórias.
* Para sua concessão, será aberto um processo com os dados do requerente e informações sobre onde pretende instalar a atividade. O local solicitado será vistoriado para ver se está de acordo com a lei vigente. Caso o local seja aprovado, o requerente deverá trazer uma autorização do responsável pelo imóvel em frente, conforme documento padrão do setor.
* Na etapa seguinte, o equipamento será vistoriado pela Smic, que verificará se está de acordo com o padrão exigido em lei.
Fonte: Gilberto Simon, chefe da seção de Licenciamento de Atividades Ambulantes da Smic
Lucíria deixa o carrinho num estacionamento do Bairro Farroupilha
Foto: Mateus Bruxel
Lucíria tem clientes fieis, como Patrícia
Foto: Mateus Bruxel
O cachorro de Almir é famoso no Viaduto da Conceição
Foto: Mateus Bruxel
Almir escolheu a profissão
De tanto ver a movimentação no entorno de um carrinho de cachorro-quente localizado embaixo do Viaduto da Conceição, no Centro, o fiscal de ônibus Almir Severino Souza, 56 anos, morador de São Leopoldo, decidiu que mudaria de profissão: há uma década, deixou de lado a conferência dos veículos que saíam do ponto ao lado do carrinho e passou a trabalhar no próprio.
- Queria mudar de função, mas não sair da rua. Aqui, conheço um novo cliente todos os dias - comemora.
O "todos os dias" não é exagero de Almir. Ele realmente não tem folga: trabalha de segunda a sábado, sempre das 11h até as 20h30min. Aos domingos, das 16h até a meia-noite. Tira apenas 15 dias de férias por ano, quando o filho Mateus, 23 anos, assume o carrinho. São mais de 60 clientes que passam pelo Cachorro do Alemão, diariamente.
"Tem espaço para todos"
Por ser uma região de grande circulação de pedestres, a clientela de Almir é extensa. O ambulante revela que há fãs do Cachorro do Alemão que vêm de Novo Hamburgo, de Portão e de São Leopoldo especialmente para deliciarem-se com o molho preparado por ele.
- Já pensei em oferecer outro tipo de lanche, mas as pessoas procuram o cachorrão. Acho que gostam do meu molho, mesmo aqueles que pedem para tirar a cebola - conta, aos risos.
Com o dinheiro do carrinho, Almir revela orgulhoso que está ajudando a formar Mateus no curso de Direito. O filho, aliás, ajuda aos domingos, quando são vendidos até 200 cachorros-quentes.
A chegada dos restaurantes sobre rodas não assusta Almir. Pelo contrário, ele garante que a clientela só aumenta.
- Quem gosta do tradicional não vai deixar de comprar da gente. Tem espaço para todos - garante.
O cachorro de Almir é famoso no Viaduto da Conceição
Foto: Mateus Bruxel
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