No Dia que celebra a mulher, Zero Hora conta as histórias de duas gaúchas que, apesar de terem realidades distintas, se unem em uma mesma ideia: a de que o estudo, da alfabetização ao pós-doutorado, pode fortalecer o sexo feminino na luta pela igualdade de gênero
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A solidão da ciência
Quando criança, a curiosidade em saber como as coisas funcionavam fazia Márcia Barbosa ser assídua no porão onde o pai, eletricista, consertava máquinas e motores que pareciam não ter mais salvação. Era como mágica - e ela queria não só aprender como executá-la, mas dominá-la por completo. Àquela época, não desconfiava de que o fato de ser mulher imporia algumas barreiras até chegar o posto que ocupa hoje, aos 55 anos: diretora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O primeiro obstáculo não foi na escola, quando seu bom desempenho em ciências lhe garantiu uma vaga como monitora no laboratório. O baque veio no primeiro dia de aula da faculdade: de 40 alunos, quatro eram mulheres, das quais somente ela se formou.
- Fui percebendo que quase não há mulheres na área de exatas. Isso gera um sentimento muito forte de solidão - comenta a professora.
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Hoje, além de gerenciar o instituto, Márcia faz parte dos seletos 20% de pesquisadoras na área de Física, segundo o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No mais alto nível de pesquisa, essa porcentagem míngua para 5%.
A conquista de Márcia não é obra do acaso. A professora, que cursou todo o ensino básico em uma escola pública de Canoas, entrou em um terreno de tigres disposta a vencer as situações mais absurdas. Em um congresso, foi aconselhada a se vestir de uma forma mais masculina se quisesse se destacar - ela usava um vestido.
- Naquele momento, ficou claro que eu não me renderia a isso. Eu iria lutar para ser respeitada sem ter de abrir mão da minha feminilidade - diz.
Para conquistar reputação, teve de reagir quando pesquisadores homens tentavam abafar seus argumentos em alguma roda de discussão, quando acusavam seu perfume de atrapalhar o debate ou quando ouviu que, profissionalmente, "estava muito bem para uma mulher":
- Esse tipo de comentário torna a evolução acadêmica das mulheres muito mais lenta, algo que a sociedade ainda não conseguiu equacionar.
A cientista, que foi coordenadora do Comitê Assessor de Física e Astronomia do CNPq e hoje é membro titular da Academia Brasileira de Ciências, defende que existam grupos de gênero em todos os institutos acadêmicos. É fundamental, segundo ela, pôr em pauta as brincadeiras sexistas que, de tão comuns, acabam parecendo naturais.
- Ter homens testando o espaço da mulher o tempo inteiro é inaceitável. É preciso atenção ao assédio sexual, que é oculto e muito responsável por intimidar as mulheres durante o percurso científico.
Márcia tem sorte de ter personalidade forte, já que nas exatas ainda não há espaço para mulheres tímidas - uma realidade que ela pretende mudar. A agressividade como requisito para ser uma boa cientista é algo desnecessário, julga ela.
- Muitas mulheres se murcham porque não estão preparadas para o confronto que a profissão exige. Os meninos são treinados desde cedo para brigar, enquanto a menina tem de ser boazinha. Quero investir em cientistas que tenham talento, não importa se elas são introspectivas ou não.
Em 2013, Márcia ganhou o Prêmio LOréal-Unesco para Mulheres na Ciência (neste ano, o título ficou com a astrofísica Thaisa Bergmann, também da UFRGS). Ela estuda as anomalias da água, em busca de alternativas para purificá-la. Projeta um dia em que homens e mulheres terão equidade no campo científico.
- Enquanto eu não precisar receber olhares tortos quando digo que sou cientista, não vou descansar desta luta.
O milagre da leitura
Com os dedos inchados por causa da artrose, Delaidia Cardoso abre o caderno cor-de-rosa de capa dura, folheia até a primeira página em branco, pega a lapiseira amarela que comprou especialmente para o início das aulas e escreve o nome da repórter, em letra de forma:
- L-U-Í-S-A. Adoro escrever nomes de pessoas.
A diarista e dona de casa do bairro Sarandi, na Capital, parece criança às vésperas do ano letivo - embora tenha 64 anos. Em uma sala de aula da Escola Municipal Dr. Liberato Salzano Vieira da Cunha, retoma um sonho de infância: aprender a ler e a escrever e, assim, fugir do grupo de 14 milhões de adultos que são analfabetos no Brasil, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Projeto promove a alfabetização de adultos na zona rural do RS
Não foi por vontade própria que, aos oito anos, abandonou a escola, sem sequer concluir a primeira série. Com a mãe com problema nos rins, se viu obrigada a interromper os estudos para ajudá-la nas lidas da casa. A rotina árdua estabelecida pelas circunstâncias de uma vida humilde a fez esquecer tudo, mas não lhe tirou o encantamento pelas letras. Ansiava pelo dia em que poderia decodificar as etiquetas do supermercado e anotar as receitas que via na televisão. Só quebrou o jejum de aprendizado quando, já sem pai nem mãe, constatou que os dois irmãos mais novos eram independentes. Eram 56 anos sem estudar.
- Escutei no rádio que iria abrir uma turma de alfabetização de adultos e pedi para uma amiga me inscrever.
O brilho no olhar da senhora que hoje é viciada em joguinhos caça-palavras chamou a atenção da professora, Carlota da Luz.
- Quando nos apresentamos ela falou para a turma toda que seu maior objetivo era pegar um livro e ler todinho, do
início ao fim.
Demorou quase um ano, mas mês passado ela concluiu uma espécie de autoajuda intitulada O Poder da Mente.
- Recomendo - orgulha-se.
Antes, ouvia o mesmo das amigas e não podia seguir o conselho, pois não sabia ler. Delaidia, viúva e sem filhos, não se deixa vencer pelo cansaço das faxinas - trabalha duas vezes por semana na casa de uma família a em Porto Alegre e outras duas em uma empresa de Canoas.
- Tem gente que diz que não tem tempo de estudar, mas tem tempo de ficar em casa à noite olhando novela - diz.
Com especial apreço pela letra efe e uma implicância inesgotável com os agás ("só servem pra confundir a gente!"), Delaidia diz que um bom professor é aquele que escreve bonito.
- É ruim quando ele escreve tudo tremido e deixa a gente sem saber se aquilo é um M ou um R (e em seguida ri, pois agora sabe que as duas letras não se parecem).
A sala de aula é mais do que um ambiente de aprendizagem para os adultos que não conseguiram concluir - ou, muitas vezes, sequer começar - os ensinos Fundamental e Médio no tempo regular. A necessidade de convívio em sociedade também motiva as 18.516 pessoas acima de 39 anos que estão matriculadas no projeto Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Rio Grande do Sul - 64% delas mulheres.
- Nós falamos não só sobre língua portuguesa e matemática, mas sobre histórias de vida. Assim, eles se sentem à vontade, pois veem que não são os únicos que ficaram para trás - aponta Carlota.
Delaidia não pretende desistir. Já perdeu as contas de quantas vezes ofereceram a ela um serviço melhor e ela teve de recusar, pois era analfabeta. Ou de quantas vezes debocharam do seu nível de escolaridade e ela, tentando entrar na brincadeira, sorriu - mas quando chegou em casa, sozinha, chorou.
- Não saber ler é como ser cega. A gente vê as coisas pela frente e não sabe o que significam. Hoje, quando eu leio uma palavra e tenho confiança de que li certo
olha, eu considero isso um milagre.