O maior desafio das fundações que mantêm os abrigos públicos para crianças em Porto Alegre é qualificar o atendimento, conforme o Ministério Público. Cinco meses depois de denunciar o sucateamento dos locais, Zero Hora mostrou que poucas reformas foram feitas, o que fez a Justiça instaurar portarias para cobrar mudanças.
Fora os riscos à saúde das crianças que as estruturas oferecem, o maior problema dessas casas é a má qualidade no trabalho, segundo a promotora Cinara Vianna Dutra Braga, responsável pela fiscalização dos locais. As falhas no atendimento privam as crianças da convivência familiar - biológica ou adotiva -, e as condenam a viver nos abrigos, que por lei são moradias temporárias.
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Feita por determinação da Justiça ou por requisição do Conselho Tutelar, o acolhimento institucional é uma medida destinada a crianças e adolescentes cujos direitos foram violados. No Brasil, conforme uma pesquisa divulgada há dois anos pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a maioria dos abrigados estava nas casas por serem vítimas de maus-tratos e abuso sexual.
Essas crianças devem viver nos abrigos temporariamente, até que a família biológica tenha condições de atendê-las ou até que sejam encaminhadas para a adoção. O tempo máximo de permanência nesses locais não pode ultrapassar dois anos, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
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O problema é que, em Porto Alegre, os furos no atendimento fazem a lei ser descumprida, conforme Cinara. A promotora conta que há casos em que os acolhidos que chegam bebês aos abrigos só deixam os locais quando completam 18 anos. Há crianças sem as ações de acolhimento (que oficializam a estadia nos abrigos), processos de destituição familiar (trâmite necessário para a adoção) ou até fora do Cadastro Nacional de Adoção. Além de os deixar invisíveis, a bagunça no atendimento compromete o futuro dos acolhidos.
- Há falta de fluxo de trabalho nas casas. Muitos acolhidos que podem ser adotados continuam lá. É preciso aumentar o quadro de funcionários e a qualificação deles - relata a promotora.
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Na comparação das inspeções do MP em julho e em dezembro, a carência dos servidores quase triplicou. Enquanto em julho faltavam seis servidores, em dezembro o órgão apontou a carência de 15 funcionários, entre eles psicólogo, assistente social, fonoaudiólogo, cozinheira e faxineira.
Em galeria de fotos, veja a atual situação dos abrigos:
CONTRAPONTOS:
Responsável pela realização de audiências com os acolhidos em abrigos em Porto Alegre, a juíza Sonáli da Cruz Zluhan tem visitado os locais para ouvir as crianças e os técnicos que trabalham nas casas. A avaliação da magistrada vai de acordo com Ministério Público: além da estrutura precária, falta qualidade no atendimento.
- Visitei uma casa que acolhe um surdo, mas ninguém fala libras. Ele não consegue se comunicar, então é comum ter de gritar quando precisa de alguma coisa. Em outra, havia um menino com necessidades especiais mal atendido. Há falta de eficiência no trabalho com essas crianças - relatou a juíza.
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Um dos motivos, conforme a magistrada, é que os profissionais que trabalham nos abrigos estão "totalmente sobrecarregados". A juíza conta que encontrou casos de crianças desligadas oficialmente dos abrigos que ainda residem nos locais e de novos acolhidos que não receberam sequer um Plano Individual de Atendimento (PIA), cadastro necessário para o trabalho com a criança.
- A vontade que eu tenho é de fechar as portas desses lugares - desabafou.
Durante a realização as audiências, que servem para avaliar a situação dos acolhidos e dar encaminhamentos para que deixem os abrigos, a magistrada instaurou duas portarias para apurar irregularidades na estrutura e no atendimento das casas João de Barro e Quero-Quero. Os ambientes estão depredados, os abrigados ficam sem atividades e não há uma rotina, conforme a juíza.
Em infográfico, veja o que melhorou e o que piorou nos abrigos:
O que diz o secretário Estadual do Trabalho e do Desenvolvimento Social, Miki Breier, responsável pela Fundação de Proteção Especial do Rio Grande do Sul (FPE):
"Essas irregularidades foram deixadas pelo governo anterior, mas queremos dizer que a questão da infância será prioridade em nossa secretaria. Esperamos resolver esses riscos apontados pelo Ministério Público nas próximas semanas. Aguardamos a posse do novo presidente da Fundação, José Luis Barbosa Gonçalves
, para tomar as medidas necessárias para a melhoria dessas casas. Vamos trabalhar também para que não faltem servidores, buscando as contratações necessárias. Vamos manter a previsão orçamentária de toda a FPE em R$ 90 milhões".
O que diz o presidente da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), Marcelo Machado Soares:
"Teve uma melhora porque conseguimos fazer grandes investimentos e mudamos três casas de endereço. Para as duas casas com mais problemas, a João de Barro e a Quero-Quero, conseguimos fazer um edital para modificar a equipe de atendimento, que é feita em cogestão com uma instituição, e a previsão é mudar uma delas de lugar até março. Foram feitas melhorias em todas as casas, mas muita coisa tem de ser refeita, pois o trabalho é muito dinâmico, precisa de manutenção. O problema não é geral. O que está traçado no relatório do MP como prioridade está sendo sanado. Em janeiro, contratamos 11 novos servidores para atender os abrigos. Gastamos em torno de R$ 28 milhões no último ano para atender as casas próprias e conveniadas, e devemos gastar R$ 32 milhões este ano".
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