Na Venezuela, o governo vê seu capital político se dilacerar com a repressão a manifestações públicas, ocupações de supermercados sob pretexto de que empresários boicotam e especulam e prisões de opositores acusados de golpismo.
Na Argentina, a morte misteriosa do procurador Alberto Nisman quando iria denunciar no Congresso o suposto acobertamento do governo a terroristas iranianos respinga na Casa Rosada. A Constituição venezuelana prevê um instituto chamado "referendo revogatório", capaz de apear o presidente do cargo pelas vias legais.
O calendário eleitoral argentino marca eleições presidenciais para outubro sem que haja um claro candidato oficial. São situações incômodas que tornam nebuloso o futuro das instituições desses países vizinhos.
Venezuela sem petróleo
Com inflação em 64% anuais, desabastecimento de um terço da cesta básica e nível de pobreza alcançando 48,4% das famílias em 2014, a Venezuela vive um impasse: qual o futuro do chavismo? Em abril de 2016, quando o presidente Nicolás Maduro completa metade do mandato, será possível, mediante o instituto do "referendo revogatório", afastá-lo do poder. Com magérrimos 22% de popularidade, o homem que sucedeu Hugo Chávez tem se digladiado com a oposição, a quem acusa de ter intenções golpistas. Em razão dessas suspeitas, já pôs atrás das grades dois líderes opositores, Leopoldo López e o prefeito de Caracas, a capital do país, Antonio Ledezma.
- A oposição pode conseguir fazer o referendo. Isso é possível política e constitucionalmente. Mas há um risco para ela: caso Maduro vença, ficará extremamente forte no poder - comenta o cientista político venezuelano Rafael Duarte Villa, professor da Universidade de São Paulo (USP).
Aparentemente, mais que uma crise, a Venezuela vive uma transição política que vem desde a vitória apertada de Maduro sobre o moderado Henrique Capriles em abril de 2013, com pouco mais que um ponto percentual de diferença - e ainda contando com a comoção provocada pela morte de Chávez.
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De lá para cá, o preço do petróleo caiu pela metade. Para a Venezuela, essa é a pior das notícias. O petróleo representa 96% das divisas do país. Com isso, as medidas sociais que sustentavam a popularidade do governo secaram - um dos indicativos é o de que 700 médicos cubanos, pagos na troca pelo petróleo, deixaram o país. E as gôndolas dos supermercados se esvaziam em razão da falta de recursos para importar produtos.
O jornalista e escritor Andres Oppenheimer, amparado em dados que mostram o aumento da pobreza entre 2008 e 2014, de 45% a 48,4%, faz uma frase de efeito que muito explica a situação atual:
- A história recente da Venezuela deveria ser ensinada nas universidades como exemplo de milagre econômico ao revés: mesmo beneficiado pelo maior boom petroleiro da sua história, o país tem níveis mais altos de pobreza.
São dados que põem em xeque o trunfo da "revolução bolivariana", iniciada quando Chávez tomou posse em 2009.
Para a realização do referendo, a oposição teme algo que supostamente já foi feito. O governo teria tirado eleitores de oposição do cadastro das ações assistenciais. A oposição está mais unida, mas espera uma reação. Pela Constituição, bastam 20% dos eleitores para que se faça o referendo. Se houver 25% de eleitores no dia da votação, o "abaixo-assinado" será válido. Caso o percentual de votantes que quer a restituição seja maior que o percentual que o elegeu três anos antes, ele será afastado, para novas eleições. Maduro teve pouco mais que 50%.
O presidente do Legislativo, Diosdado Cabello, da ala militar chavista e adversário interno de Maduro, sustenta que há a tentativa de golpe da direita. Analistas cogitam que isso poderia ser um pretexto para ele próprio dar um golpe, evitando o referendo. Até o presidente uruguaio, José Mujica, levantou essa hipótese.
O governo vai resistindo como pode. Para segurar a onda de protestos, chegou a aprovar uma resolução segundo a qual as forças policiais podem usar arma de fogo na repressão. A medida foi condenada pela ONU.
- Parece que a situação explodirá a qualquer momento - diz o historiador argentino Carlos Malamud, que vive na Espanha e é um dos maiores especialistas em América Latina na Europa.
E completa:
- Ninguém acredita, em curto prazo, na possibilidade de diálogo.
Argentina após Nisman
Argentinos vão às ruas contra a corrupção e para dizer que "a verdade não morre" (Foto: AFP)
Em meio a uma crise institucional na qual o governo de Cristina Kirchner enfrenta o Ministério Público, em especial depois da morte do procurador Alberto Nisman, a Argentina se preocupa com o futuro. Na semana passada, Cristina moveu peças para manter o kirchnerismo com o controle do poder. Em uma pontual mas expressiva reforma ministerial, devolveu Jorge Capitanich para o governo de Chaco, de onde havia saído para ser o chefe de gabinete. No seu lugar, foi posto o antes secretário-geral da presidência, Aníbal Fernández.
Centralizadora, Cristina não construiu alternativa para substituí-la. É possível que esteja buscando em Fernández, um kirchnerista de confiança, o sucessor ideal. O projeto kirchnerista original era de revezamento entre Néstor Kirchner e Cristina - a Constituição permite uma reeleição, mas não descarta o retorno depois de um mandato fora do cargo (como no Brasil). Mas Néstor morreu em 2010, e a estratégia também.
- A morte de Nisman tem efeitos políticos, mas a presidente ainda pode usar a máquina para repassar capital político a um sucessor, e a oposição está fragmentada - analisa o cientista político Rafael Duarte Villa.
Juiz argentino rejeita denúncia contra Kirchner por acobertar iranianos
Como chefe de gabinete, Fernández terá visibilidade e pode crescer como alternativa até outubro. As outras opções são frágeis, e uma pesquisa realizada na semana passada pelo instituto Management & Fit mostra que só 21,3% estão propensos a votar no candidato governista. E o pior, para Cristina, foi quando o levantamento perguntou se o eleitor votaria em um candidato indicado pela presidente. Somente 19,3% responderam "sim", e 55,9% garantiram que não.
Se já havia desgaste e crise econômica, a situação se agravou com a morte de Nisman às vésperas de depor ao Congresso sobre suposto acobertamento de Cristina a autores iranianos em atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina, que deixou 85 mortos em 1994. Dois anos antes, houve 29 vítimas num ataque à embaixada de Israel.
- A morte de Nisman desatou uma tormenta de inusitadas consequências - diz o historiador argentino Carlos Malamud.
Malamud se refere à forma como Cristina tratou a morte de Nisman, cogitando a possibilidade de uma inverossímil conspiração para prejudicar a presidente impopular e em fim de mandato, mesmo contra as evidências que indicam queima de arquivo.
- Cristina tentou arrebatar de Nisman a condição de vítima - diz Malamud.
Os pré-candidatos kirchneristas mais cotados são o ministro do Interior, Florencio Randazzo, e o governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli, o mais popular, mas o menos afinado com Cristina.
Malamud vê os dois principais candidatos oposicionistas, Sergio Massa (do "peronismo renovador") e Mauricio Macri (prefeito de Buenos Aires e seguidor de uma linha claramente liberal na economia) sem discurso e sem capilaridade nacional. E por aí está a possibilidade de triunfo do governo, apesar das adversidades.