Já se passaram quase dois anos da tragédia na boate Kiss, e é verdade que ainda sentimos as consequências daquela noite terrível. Mas também é verdade que somos, hoje, uma cidade em transformação. É praticamente consenso que o maior aprendizado que tiramos dessa dolorosa lição, até o momento, foi quanto à prevenção - e não só contra incêndios. Muitos especialistas, autoridades e moradores de Santa Maria acreditam que já avançamos muito nesse quesito. Para outros, ainda há um longo caminho a percorrer. E há aqueles que acham que não nos tornamos mais prudentes, porque não é da cultura dos brasileiros aprender com exemplos. Certo é que nunca mais seremos o que éramos antes de 27 de janeiro de 2013. E para todos, a opinião é unânime: para ser uma cidade melhor no futuro, Santa Maria depende de cada um. E de todos: órgãos públicos e cidadãos.
O "Diário" falou com jovens e com os pais deles, com representante das vítimas, com lideranças políticas de Santa Maria e da região, com o prefeito Cezar Schirmer e com especialistas das áreas técnicas e humanas para saber de que forma a tragédia impactou os santa-marienses, a engrenagem da máquina pública e privada no município, que mudanças trouxe e como será a cidade daqui a cinco, 10 anos. O resultado é uma série de reportagens que será publicada no jornal a partir desta edição.
Um passo de cada vez, mas andando
De forma gradual, nos últimos dois anos, Santa Maria deixou o luto e voltou a se movimentar. Cientistas sociais, políticos e empresários acreditam que a tragédia na boate Kiss, em 27 de janeiro de 2013, não mudou a dinâmica do município para a maioria da população. O comércio, os serviços, as instituições de ensino e os transportes continuaram funcionando, com uma ou outra alteração. O principal efeito do incêndio foi percebido mesmo na máquina pública que ficou mais lenta.
De acordo com a coordenadora do curso da História do Centro Universitário Franciscano (Unifra), Roselâine Casanova, a tragédia é lembrada, mas a cidade se desenvolve da mesma maneira, ou seja, não perdeu suas características:
- Santa Maria é uma cidade moderna, dinâmica. Em termos econômicos, é mais pobre do que Caxias do Sul e Pelotas, mas, em vivência e em conhecimento, é muito mais cosmopolita que essas outras, pelo contingente de pessoas que chegam e saem.
Talvez esse dinamismo faça com que, passados 24 meses, a maior parte da população não sinta diretamente os efeitos da tragédia. Porém, nos setores privados da construção civil e do comércio e nos órgãos públicos - bombeiros e prefeitura -, as consequências ainda são vividas de forma intensa, dia após dia. Houve um período de estagnação em 2013 e, hoje, ainda persistem dificuldades.
Atualmente, a tramitação de projetos e de licenças ocorre em ritmo bem mais lento do que antes. É que as análises se tornaram mais criteriosas e complexas com a nova legislação de prevenção, publicada em junho de 2014.
Luiz Fernando Pacheco, presidente da Câmara de Comércio, Indústria e Serviços de Santa Maria (Cacism), concorda com as exigências, mas considera que a cidade não tinha estrutura pública para comportar essas mudanças que vieram a tão curto prazo:
- Talvez levássemos 20 anos para chegar nesse nível que estamos de legalidade e exigência. Mas, por causa da tragédia, pulamos tudo isso em dois anos. Daí, a dificuldade de as empresas se adequarem e de bombeiros e prefeitura conseguirem dar conta de toda a demanda que surgiu.
O engenheiro civil Adelson Rodrigues Gonçalves, que trabalhou na elaboração da lei municipal contra incêndio em 1991 e na nova lei estadual, concorda:
- A estrutura está sempre aquém da necessidade. Tanto a do município quanto a do Estado são insuficientes para o volume de atividades da cidade. Ainda hoje, os processos são demorados.
Para o prefeito Cezar Schirmer, o impacto do incêndio na casa noturna foi sentido por todos, em diferentes aspectos:
- É inegável que a tragédia atingiu toda nossa cidade, nos âmbitos emocional, social e econômico. É imensa a preocupação para que não aconteça de novo.
Nos bombeiros, mudanças dentro e fora do quartel
Atragédia da Kiss atingiu o Corpo de Bombeiros em cheio e provocou mudanças dentro e fora dos muros do quartel. O sistema simplificado que era utilizado para emissão de alvarás foi questionado, o que resultou, de imediato, na adoção de antigos métodos. Depois daquele 27 de janeiro, o Comando-Geral da Brigada Militar determinou a volta da exigência de Planos de Prevenção e Combate a Incêndios (PPCIs) completos em todos os casos. O Setor de Prevenção de Incêndios (SPI) foi o que passou por mais adequações na equipe e em metodologia.
- Tivemos duas consequências no quartel: a demanda aumentou, e o procedimento modificou, tornando o trabalho mais complexo. Por conta disso, tivemos que mudar a nossa estrutura e produzir mais - explica o comandante do 4º Comando Regional de Bombeiros, Luis Marcelo Gonçalves Maya.
Outra medida adotada depois do incêndio é o acompanhamento online dos projetos protocolados. Por meio de uma senha, o dono do empreendimento e o engenheiro responsável pelo projeto podem verificar a tramitação da solicitação no site dos bombeiros.
Além disso, houve outros reflexos. O governo do Estado autorizou concurso para 400 novos bombeiros. Porém, até hoje, nenhum deles foi chamado. No comando local, houve remanejo de pessoal, e a equipe da SPI foi ampliada (passou de 23 funcionários para 30). O número de horas trabalhadas também aumentou (cada servidor passou de 6 para 12 horas por dia). Os profissionais ganharam mais atenção. Os efeitos pós Kiss motivaram a criação de um serviço de saúde no Hospital da Brigada Militar, em meados de 2014, voltado para o atendimento de profissionais (bombeiros e policiais) submetidos a situações que podem gerar estresse pós-traumático. Por enquanto, o encaminhamento é opcional, mas, no futuro, será obrigatório.
Para o comandante local, até mesmo a desvinculação do Corpo de Bombeiros da Brigada Militar, uma reivindicação antiga da corporação que pleiteia mais recursos, foi acelerada por causa do incêndio na boate Kiss. Segundo Maya, a relação com a comunidade também mudou:
- As pessoas valorizam o trabalho dos bombeiros. Éramos vistos como alguém que ia incomodar. Agora, muitos não discutem a necessidade dos PPCIs e vêm aqui para discutir como fazê-los - diz Maya.
A SEÇÃO DE PREVENÇÃO EM NÚMEROS
- Antes da tragédia, 23 bombeiros atuavam no setor. Atualmente, são 30 pessoas - 29 bombeiros (destes, oito trabalham nas vistorias, e oito, na análise de projetos) e um civil que faz a digitação de documentos
- Cada bombeiro fazia 6 horas por dia. Atualmente, fazem 12 horas diariamente, de segunda a sexta-feira, com uma folga por semana e sobreaviso aos finais de semana, caso ocorram eventos temporários (o número de horas extras em toda a corporação passou de 2,1 mil para
5 mil por mês)
- Antes da tragédia, havia uma média de 200 pedidos por mês no setor, entre vistorias e análises de projetos. Em abril de 2013 e nos primeiros meses depois do incêndio, o número passou para 450 mensais, entre análises e vistorias
- Em dezembro de 2014, foram realizadas 332 análises de projetos (143 análises e 189 reanálises) e 264 procedimentos entre vistorias (128) e revistorias (136), num total de 596 serviços
- Também em dezembro de 2014, o setor fez 397 notificações - 155 de correções de vistorias e 242 de análise de projetos y Em janeiro de 2015, haviam 184 processos aguardando na fila - 123 para serem analisados e 61 para reanálise
- O tempo de resposta, atualmente, é de 30 dias para a primeira análise e de 60 dias para a reanálise
Na prefeitura e entre profissionais, receio em assinar documentos
Os efeitos do indiciamento de funcionários públicos municipais pela Polícia Civil são sentidos até hoje na prefeitura de Santa Maria. Extraoficialmente, profissionais da área de construção civil, servidores do quadro municipal e autoridades da cidade garantem que "os servidores não querem assinar documentos com medo de serem responsabilizados no futuro."
O prefeito Cezar Schirmer confirma que os problemas persistem na prefeitura:
- Ainda enfrentamos dificuldades internas. É um legado que nos obriga a refletir de forma mais intensa, não só na área pública. Também os empresários, sobretudo do setor, precisam compreender que todo o cuidado é pouco. Mas isso é um longo processo.
O temor também ocorre entre profissionais de engenharia. Para o engenheiro civil Adelson
Rodrigues Gonçalves, um dos motivos é a falta de laboratórios que testem os materiais utilizados na construção:
- Os bombeiros exigem (assinatura de responsável técnico) porque está na lei, mas como vamos assinar um projeto se não sabemos o quanto aquele material é resistente ao fogo? Os materiais teriam de ter certificado de tempo de resistência ao fogo. Isso é urgente.
Assim como nos bombeiros, na prefeitura, os projetos estão recebendo muito mais atenção por parte dos servidores e, com isso, a tramitação acabou ficando mais lenta. Apesar de não ter sido um efeito da tragédia, a implantação da reforma administrativa é uma tentativa de dar mais agilidade.
- A reforma foi feita para modernizar a prefeitura, acabar com sobreposições (de funções) e corrigir problemas internos - diz Schirmer.
AS OPINIÕES
"Houve uma forte retração, um período de paralisia. As pessoas ficaram meio atônitas. Em todos os setores de Santa Maria, percebíamos o olhar de pesar. A cidade perdeu o brilho juvenil. Aos poucos, a cidade foi retomando o seu andamento de forma lenta, o que é natural, porque todos os métodos foram reavaliados. As regras se tornaram mais rigorosas. A lição que fica é que, no setor público e na liberação de qualquer licença para qualquer atividade, não existe jeitinho, porque, se houver, pode resultar em uma catástrofe. Tudo tem de ser avaliado e fiscalizado, porque a preservação da vida das pessoas tem de ser o centro das nossas ações. Santa Maria está passando por um processo de aprendizado. A impunidade é o pior que pode acontecer para a recuperação da cidade, pode ser o maior desgaste e o grande entrave no processo de resgate da autoestima da cidade e na credibilidade no poder público. Temos que reconhecer o episódio, mas tirar dele força para superar e dar a volta por cima."
Valdeci de Oliveira, deputado estadual do PT
"A população pediu uma legislação mais rígida, assim como a liberação de alvarás. Mesmo os que não sofreram uma perda direta, tornaram-se vítimas indiretas da tragédia, e essa dor permanece na memória de todos os nós, dois anos depois. Houve uma mudança de comportamento, dos pais em relação aos filhos, dos agentes públicos, dos donos de estabelecimentos. A academia demonstrou preocupação. Universidades já incluíram ou vão incluir disciplinas para tratar de prevenção de incêndio. Cresceu a responsabilidade em fazer vistorias e assinar alvarás. Dentro do poder público, houve exigência maior. As pessoas estão pecando pelo excesso, mas não pela omissão. Os donos de estabelecimentos têm uma preocupação gigantesca, mas os jovens que não viveram diretamente não estão preocupados e precisam repensar isso."
Jorge Pozzobom, deputado estadual do PSDB
"Nunca vamos esquecer, mas a cidade tem de continuar"
Diário - Que transformações, na sua opinião, a tragédia trouxe para a cidade?
Cezar Schirmer - Como observador, continua sendo uma cidade de jovens, de alegria, de festas. Isso não mudou. Eles continuam desejando espaços públicos, privados, locais onde possam se encontrar de dia ou à noite.Do ponto de vista dos cuidados, não só aqui, servidores públicos municipais, estaduais, empresários e pais, em relação aos seus filhos, assumiram um cuidado maior. Despertou em cada um uma preocupação adicional.
Diário - Como o senhor vê Santa Maria no futuro?
Schirmer - Ao se distanciar mais do fato, a cidade vai voltando a uma situação de normalidade. Nunca vamos esquecer, mas a cidade tem de continuar, tem de fazer um esforço em busca da superação. Não é ignorar o que houve ou evitar que se tomem providências. É cada qual, na sua atividade, assumir uma posição de visualizar o futuro, de construir outra realidade com todos os cuidados. Quanto mais a cidade estiver unida nesse sentido, mais rapidamente ela adquirirá esse caráter de normalidade, do que temos que fazer, do seu desenvolvimento e da sua qualidade de vida.