O incêndio na Kiss e as 242 mortes decorrentes dele chocaram o mundo. Não poderia ser diferente. A maior tragédia da história gaúcha e uma das maiores do Brasil causou grande comoção nos mais diferentes lugares. Mas foi em Santa Maria que os efeitos foram sentidos de maneira mais intensa. De uma ou outra forma, direta ou indiretamente, o incêndio impactou os santa-marienses em todas as áreas. De imediato, a cidade entristeceu. Aos poucos, o trabalho, os estudos e o lazer foram sendo retomados. Mas será que mudamos ou continuamos nos movendo e agindo como antes?
:: Homenagem às vítimas da Kiss começa nesta segunda-feira
Para Roselâine Casanova, coordenadora do curso da História do Centro Universitário Franciscano (Unifra) que pesquisa espaços urbanos e sociabilidades, a tragédia na Kiss trouxe uma mudança individual de comportamento, e não coletiva. Apesar disso, conforme especialistas, o ritmo das mudanças e da superação da dor em Santa Maria é o mesmo visto em outros casos de tragédias e catástrofes.
- As pessoas passaram a se cuidar mais, e as instituições, também. No mesmo momento em que o mundo olhava para cá, cada um olhava para si. Mas os hábitos coletivos permanecem. Continuamos ocupando os mesmos espaços. Continuamos sendo acolhedores e interagindo muito com quem chega na cidade - diz Roselâine.
O presidente da Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Adherbal Ferreira, concorda e acredita que há muito ainda a fazer para que a consciência pessoal passe a ser uma cultura de prevenção.
- Hoje, as pessoas observam mais as questões de segurança, mas é preciso uma mudança que comece em casa e siga pela vida, para que a população entenda que prevenção é importante.
Prevenção perdeu força
Porém, o que vemos nas ruas, na noite, conversando com os santa-marienses, é que essa mudança individual não atingiu a todos. De fato, o que se observa é que a preocupação de ter ambientes protegidos perdeu força com o passar dos meses. Atualmente, ela é mantida por parte dos bombeiros, responsáveis por exigir e fiscalizar, e das empresas e condomínios, que tiveram que se adequar, mas não pelas pessoas de um modo geral. O hábito de entrar em um local e verificar se tem extintores, luzes e saídas de emergência é de poucos.
Para o cientista social, professor de sociologia da Unifra, Guilherme Howes, a tragédia será um evento determinante na história social da cidade nos próximos cem anos, mas não tornará as pessoas mais prudentes. Segundo Howes, isso faz parte da cultura dos brasileiros:
- Temos imensa dificuldade de aprender com exemplos. Não aprendemos com a Kiss, como não aprendemos com a guerra, que é o trânsito. Para que o impacto que é a Kiss causasse uma verdadeira transformação, deveria passar por nós a conscientização de que somos os mobilizadores dessa preocupação. Parece que foi um grande azar ou um acaso, quando, na verdade, foi uma série de negligências que têm risco potencial de se repetir.
Ainda estamos no meio do furacão
Se o incêndio na boate Kiss fosse um furacão, dois anos após a tragédia, Santa Maria ainda estaria girando no meio dele, tentando fazer constatações". A metáfora foi usada pelo professor de sociologia da Unifra, Guilherme Howes, para representar o turbilhão de emoções e conflitos que ainda vivem os santa-marienses em decorrência da tragédia e da tentativa de entendê-la.
Em meio a uma cidade que se reorganiza, estão os familiares das vítimas, os sobreviventes, os parentes e todos aqueles que têm ligação com eles, ou seja, milhares a mais do que os 242 mortos. Nesses dois anos, por vezes, os parentes dos mortos se sentiram à margem da sociedade que pertencem. A impressão é que a população que se uniu em caminhadas pelas ruas da cidade em janeiro de 2013 e se mostrou tão solidária, cansou de ouvir os lamentos, não quer mais assistir aos protestos e prefere esquecer o que houve.
Segundo a cientista social Priscila Peixoto, esse comportamento está relacionado ao fato de as pessoas quererem se distanciar da morte:
- Antigamente, as pessoas tinham uma relação mais próxima com a morte e até velavam parentes em casa. Atualmente, a sociedade se distancia do que a remete à morte. Evita o envelhecer, coloca seus doentes em hospitais, vela seus mortos em capelas e espera que o luto seja vivido na intimidade do lar, para que as pessoas não sejam contaminadas pela dor e não precisem refletir sobre a finitude da vida.
Respeito aos diferentes interesses
A tragédia na Kiss fez com que as pessoas tivessem de lidar com a morte de muitos jovens, o que rompe o ciclo natural do nascer, envelhecer e morrer. Com o passar do tempo, com a retomada das atividades cotidianas, a população tenta empurrar a ideia de morte para onde ela tem de estar, ou seja, longe da vida. Mas, aqui, vive um grupo de familiares das vítimas que não consegue retomar suas atividades e que não quer deixar que a tragédia seja esquecida, o que gera um choque entre eles e parte da cidade.
- É importante que os parentes não se deixem calar. E é uma obrigação de todos os habitantes dessa cidade deixá-los falar e ouvi-los, porque, quando eles defendem esses direitos, estão defendendo os direitos de todos nós e de nossos filhos - diz Howes, citando o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau.
O professor fala do princípio iluminista defendido por Rousseau no século 18, que diz que podemos não concordar com o que o outro diz, mas temos de defender o direito de ele dizer.