O estreitamento do mundo também se dá pelo mar: o Atlântico e o Pacífico terão, dentro de cinco anos, mais uma ligação, cuja imensidão pode ser avaliada pelo valor de US$ 50 bilhões (R$ 135 bilhões) envolvido na construção.
A obra será tocada por 250 mil pessoas, entre empregos diretos (50 mil) e indiretos (200 mil), quase a população de Santa Maria, a quinta maior cidade do Rio Grande do Sul. Mais: o canal terá até 520 metros de largura, 26,7 metros de profundidade e 278 quilômetros de comprimento. O percurso é 32 quilômetros mais longo que a distância de Porto Alegre até Pelotas, já quase tocando no Uruguai.
Enfim, pode-se comparar tal grandiosidade àquele que os analistas temem ser o destino monopolizador da obra: o atraente mercado chinês, de 1,357 bilhão de habitantes.
- Para a Nicarágua e a América Central, será um impulso importante no desenvolvimento e isso pode ainda beneficiar países sul-americanos. Não há dúvida de que aumentará a presença da China na região. Mas precisa ficar claro até onde isso vai, para sabermos bem o tipo de consequência que a obra vai trazer - diz o professor venezuelano Rafael Duarte Villa, professor de ciências políticas na Universidade de São Paulo (USP).
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O temor se justifica. A obra, de tamanho 3,5 vezes superior aos 77 quilômetros do centenário Canal do Panamá, será executada pela concessionária chinesa HKND, que pôs a pedra fundamental em 22 de dezembro.
O governo nicaraguense concedeu à HKND, em junho de 2013, a concessão para construir o canal e explorá-lo durante 50 anos, com possibilidade de renovação ao final do período. O projeto ainda terá obras acessórias, como dois portos, um aeroporto, uma zona franca, um complexo turístico e outro habitacional.
O monumento, que também levará o nome de Grande Canal Interoceânico, tende a aumentar as relações entre China e América Latina. Nos últimos 13 anos, aliás, sem esse canal que dê vazão às mercadorias, o comércio bilateral saltou de US$ 10 bilhões para US$ 257 bilhões, mais de 25 vezes. A China já é a maior exportadora de matérias-primas para o Brasil e acalenta o sonho de facilitar a importação do petróleo venezuelano.
- Para evitar um novo tipo de dependência, como ocorreu com o Panamá em relação aos EUA quando foi inaugurado o canal, em 1914, é importante o envolvimento de outros países, como o próprio Brasil, e organismos multilaterais - diz Duarte Villa, venezuelano radicado no Brasil.
- Certamente, vai aumentar o comércio com a China, até porque o calado permitirá o trânsito de navios com maior porte, e isso tem diversas implicações. Temos de avaliar ainda como esse episódio impactará no Brasil - acrescenta a professora Denilde Oliveira Holzhacker, da ESPM-SP.
As intenções do responsável pela obra são tão modestas quanto a própria.
- O futuro da humanidade será beneficiado por este canal - anuncia o empresário Wang Jing, 41 anos, criticado por muitos pela inexperiência e pela escassa preocupação ecológica.
A 600 quilômetros do Canal do Panamá, o Canal da Nicarágua permitirá, ao promover um segundo corte no mapa da América Central, o trânsito de navios de maior porte. O objetivo do governo nicaraguense, com esse projeto de altos números e longos prazos, é passar a crescer 10% ao ano e depender menos dos EUA.
Diga-se, aliás, essa é a meta também da China, de outros países orientais e dos países latino-americanos, em especial os do Caribe. Com a obra, as nações abrirão um trânsito à margem dos EUA, em termos geográficos e comerciais.
EUA chegaram a fazer estudos para obra
O Canal da Nicarágua ligará o Mar do Caribe, no Oceano Atlântico, ao Oceano Pacífico, através da Nicarágua. Seguirá a trilha de rios até o Lago Nicarágua, que atravessará, para depois também atravessar o istmo de Rivas e chegar ao Pacífico.
Tal construção é sonho antigo, em especial na Nicarágua, país banhado por longos e profundos lagos, que facilitam a obra. Foi proposta já na época colonial. Luís Napoleão escreveu um artigo sobre a sua viabilidade no início do século 19. Todo o comércio tinha de ser feito por meio de um trajeto tido hoje como incompreensível: contornava a América do Sul.
Os EUA chegaram a fazer planos, mas os abandonaram no início do século 20, após a aquisição dos interesses franceses no Canal do Panamá, aberto em 10 anos e que, durante cem anos de administração americana, impôs aos panamenhos a máxima segundo a qual sua nação era o país de um canal, e não o contrário, o canal seria de um país. Enfim, o Canal do Panamá, a "esquina do mundo", fez com que fosse por água abaixo a ideia de construir o da Nicarágua.
Agora, o que ocorre é que, mesmo o Canal do Panamá sendo ampliado, o aumento no tamanho dos navios (caso específico da embarcação Triplo E, que comporta cerca de 18 mil contêineres de carga) tornou-o obsoleto para grande parte das comunicações por mar. A estimativa é de que o novo canal comporte até 25 mil contêineres, contra 13 mil do que passa pelo Panamá.
E agora um fato que parece incontornável: consolida-se a presença chinesa no Caribe e na América do Sul. Fica no passado o monopólio americano, o que é histórico.
Dizem os analistas, porém, que a economia de um canal que permite o trânsito das embarcações de maior porte é boa para toda a economia mundial. Estima-se que os custos do comércio internacional podem ser reduzidos de 30% a 40%.
A construção do Grande Canal Interoceânico é viável porque a Nicarágua tem recursos hídricos em abundância. O Lago Nicarágua, por onde passarão 105 quilômetros do canal de 278 quilômetros, tem 8,624 km². Seu uso causa, porém, forte polêmica entre os nicaraguenses.
De acordo com Victor Campos, diretor do grupo ambientalista Humboldt, o projeto põe em risco a bacia hidrográfica que fornece água para a maior parte da população. A reserva ambiental de Punta Gorda, que abriga 120 espécies de pássaros, mamíferos e répteis, também pode, segundo ele, ser afetada. Mais: 30 mil famílias seriam prejudicadas em razão de desapropriações.
Panamá teve salto na atividade econômica
Nos últimos três meses, houve pelo menos 15 protestos contra o canal.
- Os protestos têm as seguintes mensagens: não podemos vender nossas terras nem aceitar expropriações, precisamos defender o lago e precisamos cuidar para não perder nossa soberania - resume a advogada e ativista Mónica López, que abriu ação judicial contra a obra alegando que ela atende apenas a interesses chineses.
O grupo HKND, responsável pela obra, contratou a consultoria britânica ERC para auditar possíveis impactos ambientais. Planeja reflorestar áreas e deter a sedimentação do Lago Nicarágua.
Em relação à soberania, uma curiosidade: o Panamá nasceu em razão do canal. A área em que foi construído pertencia à vizinha Colômbia. Os rebeldes que exigiam a independência a proclamaram somente porque o presidente americano Theodore Roosevelt interveio a favor de um Panamá, em tese, livre. A independência habilitou os EUA, como fiadores da construção, a usufruir plenamente de sua exploração.
Os olhos do governo nicaraguense se voltam para a oportunidade de desenvolvimento do país centro-americano independentemente dos EUA. Nação de 6 milhões de habitantes, com um produto interno bruto de US$ 10 bilhões e taxa de crescimento já em 5% anuais, a Nicarágua quer mudar o próprio perfil econômico e aumentar a renda per capita às custas da exploração da ligação entre os oceanos. Quase metade da sua população vive na pobreza, apesar de esse traço socioeconômico ter sido diminuído, e uma das marcas mais salientes da atividade produtiva é o alto grau de informalidade.
O Panamá é o parâmetro. Desde que passou a administrar o canal, deu um salto econômico, com crescimento médio de 9% ao ano - um crescimento chinês.