Depois de transmitir o cargo a José Ivo Sartori, o governador Tarso Genro vai tirar 10 dias de férias no Uruguai, com a família, e, ainda em janeiro, mergulha numa das suas atividades preferidas: o debate com intelectuais europeus. O primeiro roteiro começa por Sevilha, passa por Madri e termina em Lisboa. Sem mandato e sem cargo, planeja escrever artigos e só admite concorrer outra vez em uma hipótese: se houver uma Assembleia Nacional Constituinte.
Em julho ou agosto, Tarso irá a Cuba, visitar amigos e observar o processo de reorganização econômica do país após a reaproximação com os EUA. Entre uma agenda internacional e outra, ampliará sua participação nas discussões sobre o futuro do PT, mas garante que não será o líder da oposição. Nesta entrevista, Tarso faz um balanço dos quatro anos de mandato.
Ao terminar esses quatro anos sua sensação é de alegria ou de frustração?
Olha, fim de governo é sempre uma mescla dessas duas coisas. Estou muito feliz por terminar o meu mandato da forma como ele está terminando. Sem nenhuma comoção social grave que envolvesse o governo, sem nenhum repto de violência da polícia contra movimentos populares ou movimentos sociais. Claro que teve, tem e terá, por muito tempo ainda, questões pontuais a serem resolvidas na segurança. Temos a celebrar o aumento da renda dos gaúchos, a reestruturação da dívida, o pleno emprego, a superação do arrocho salarial dos servidores, o pagamento dos salários em dia. Mas também tem frustrações.
Qual é a sua maior frustração?
É não ter podido investir os recursos disponíveis na infraestrutura, embora tenhamos investido bem mais do que os governos que nos precederam. É a luta contra a burocracia, a luta contra a falta de uma legalidade mais ágil para resolver as coisas. É o temor que os servidores têm hoje de tomar qualquer decisão e ser processados depois, e que tu tens de respeitar, como na questão ambiental. Sinto que cumpri a minha responsabilidade com relação ao Rio Grande. A adversidade eleitoral não me tira este sentimento porque sabemos que uma eleição sempre tem dezenas de fatores que influem.
Em uma entrevista a ZH, o ex-governador Antônio Britto disse "que o Rio Grande do Sul não elege um governador, deselege outro". O senhor concorda com essa expressão?
Tem sido esta a tradição. Eu li aquela entrevista do governador Britto e, ressalvadas as discrepâncias programáticas e a visão econômica do Estado que temos, acho que ele disse coisas corretas. Acho que essa aí foi uma coisa correta que ele disse. E também acho que aquela visão que ele colocou de que o Estado tem uma certa veia de frustração prévia em relação ao futuro também é uma coisa correta. O Estado tem essa visão de que o futuro vai ser sempre mais difícil do que o presente. Isso não é verdade. A própria história do Rio Grande tem demonstrado que não é. O Rio Grande do Sul tem tido avanços e recuos e tem sobrevivido bem, como um dos Estados mais importantes da União. E o que falta ao Rio Grande do Sul, na minha avaliação, é maior força política para interferir nas decisões econômicas do Estado brasileiro, que ainda é dominado por uma visão paulista do desenvolvimento.
As bancadas no Senado e na Câmara são pouco ativas para influir ou o problema está na sociedade?
Não é o problema de representação. É um problema estrutural do país, que tem uma elite política e econômica muito localizada em São Paulo, que olha a economia e as finanças do país daquilo que chamo de "ótica da Avenida Paulista". E isso independe dos presidentes. Acho que o presidente Lula e a presidenta Dilma melhoraram muito isso, até pela atenção que o Rio Grande do Sul teve neste período _ obras e dívidas são dois exemplos. Mas estamos muito longe ainda de ter um poder central que tenha uma visão econômica equilibrada, com estabilidade política para o futuro.
Há uma ideia geral na sociedade de que o tal alinhamento das estrelas não produziu os resultados que se esperava, apesar do aumento dos investimentos federais. No que falhou este alinhamento?
Não concordo com a preliminar. A sociedade gaúcha viu positivamente este alinhamento. Tanto é verdade que a Dilma ganhou a eleição aqui. Acho que ela foi politicamente insuficiente. Isso está retratado na questão da dívida, na qual a presidenta sempre demonstrou uma boa vontade e um compromisso, que ao fim e ao cabo ela cumpriu, mas que foi brecado. Quem brecou? A elite de gestão financeira do governo, contra inclusive a posição do Arno Augustin. E de onde é esta elite de gestão financeira? Particularmente centrada em São Paulo. Ao Estado de São Paulo sequer interessava isso, porque beneficiaria muito mais a cidade de São Paulo, que está nas mãos do PT. Tanto o Lula quanto Dilma avançaram muito na questão de respeito ao Estado e de ajuda ao Estado, mas não mudou a equação federativa brasileira. E esta equação federativa tem resultados na política muito fortes negativamente para Estados como o Rio Grande do Sul. Veja-se, por exemplo, a Lei Kandir e o ressarcimento parco que nós temos das exportações.
Por que o senhor não conseguiu os ressarcimentos da Lei Kandir?
Nós conseguimos parcialmente. Menos do que o necessário. Mas isso ocorre em função dessa força política centralizadora que tem a elite política e econômica de São Paulo, a visão que esse pessoal tem do desenvolvimento e da economia do país. Nós, aqui no RS, com essa questão das importações, somos na verdade uma vítima dessa equação. Para mudar essa situação de maneira substancial, isso passa fortemente por uma reforma política e por uma revisão do pacto federativo, particularmente na questão tributária. E isso nós ainda estamos um pouco longe de conseguir. A grande luta que vai ocorrer no próximo período no país vai ser esta. E vai ter uma grande repercussão no país a partir de 2018.
O peso da crise financeira do Estado
O senhor aponta vários caminhos para o futuro, mas o Estado tem um problema de curto prazo: a arrecadação não cobre as despesas. Cada governo financiou o déficit de um jeito. O senhor o fez utilizando R$ 6 bilhões dos depósitos judiciais, mais o caixa único. Como se resolve o problema de caixa no curto prazo?
Aí, tens de perguntar para o Sartori, não para mim. Eu insisto nesta questão porque, quando me fazem esta pergunta, me comprometem com uma gestão que não é minha. Eu disse como ia fazer. E fiz no atual governo, criando diversas fontes alternativas de financiamento, desde o uso competente do caixa único e dos depósitos judiciais, a redução das contrapartidas com a União, a troca de dívida cara por dívida barata, novos financiamentos para usar no caixa único também e aplicá-los em investimentos, e aumentar a arrecadação do Estado através do crescimento econômico e de uma maior qualidade tecnológica e técnica da Fazenda. Agora, como o governo que me sucede vai fazer, depende do projeto que ele aplicar.
Se o senhor, quando assumiu, não tivesse aqueles R$ 4 bilhões em caixa dos depósitos judiciais, teria conseguido pagar os salários em dia?
Claro que teria. Só que eu não poderia chegar aos 12% na saúde. Mas os salários eu iria privilegiar. Mas teria sim. Basta você tirar esses recursos, por exemplo, que eu dobrei para a área de saúde, você vai ver que os salários dos servidores poderiam ser mantidos com os aumentos, inclusive, que foram dados.
Com os aumentos que deu, o senhor conseguiu governar quatro anos sem nenhuma greve com adesão significativa, mas parte dessa conta ficou para o seu sucessor pagar. Como a receita não cresceu o esperado, esses aumentos não ficam impagáveis?
Não ficam impagáveis. É mais uma vez uma questão de como o próximo governo vai conduzir. O crescimento do Estado não foi o dobro, como eu queria. Mas foi praticamente 70% maior do que a média do crescimento brasileiro. No próximo período, o RS pode ter o mesmo desempenho. E tem recursos ainda disponíveis, do ponto de vista de base legal e financeira, para o RS captar mais recursos da União, como eu captei, por exemplo, com o acordo da CEEE. Veja-se as estradas.
O senhor se refere às estradas do tempo do governo Simon? Todos os governos falam nisso. É difícil acreditar que o Estado possa receber esse dinheiro um dia.
Exatamente. Mas ninguém acreditava também no pagamento da dívida da CEEE. Tinha uma decisão judicial, que poderia ser cumprida ou não. A União tem o controle sobre a execução dessas decisões judiciais fazendo recursos, embargos e cálculos que poderiam levar ao infinito esta dívida. Então, tem a alternativa de crescimento da receita, de melhorar ainda mais a capacitação tecnológica da fazenda. A dívida ativa do Estado tem R$ 4 bilhões que são cobráveis ainda. Isso aí pode ser também acionado.
Isso não depende também de o Judiciário ser mais ágil?
As duas coisas. O governo criar condições para o Judiciário andar mais rápido e a nossa Procuradoria ser mais potencializada ainda do que foi. Ainda tem margem para isso, pra melhorar. Nós praticamente dobramos a cobrança da dívida ativa e acho que se pode agregar 50% em termos reais dessa cobrança. Mas tanto essas questões relacionadas com a União, de recursos que tem lá, e questões relacionadas, por exemplo, com a redução do pagamento das mensalidades, da amortização da dívida, isso aí é luta política. .
Com um ministro da Fazenda como o Joaquim Levy, que é linha dura, a negociação não fica inviável?
Bom, com o Levy seria muito difícil a negociação, você obteria isso só com muita pressão, semelhante a essa que eu fiz para reestruturar a dívida. Agora, o governador que entra deve ter talento político, e acho que o governador Sartori pode ter esse talento, de articular uma grande pressão nacional de confronto político com os demais Estado que não gostariam que ocorra isso. Sempre disse que há três degraus fundamentais para resolver a questão da dívida. Primeiro, a reestruturação dos indexadores. Segundo, a redução das prestações. E terceiro, como possibilidade até alternativa a essa segunda, é vincular o recurso que vai a uma ordem de volta, para aplicar em investimentos, inclusive, acordados entre o governo federal e estadual.
Se fosse indicar uma área que teria prioridade em um eventual acordo de redução das prestações da dívida, seria para pagamento do piso do magistério?
Depende de como vai se fixar o piso. Mas eu diria o seguinte: isso reduziria em muito a necessidade do próximo governador buscar recursos dos depósitos judiciais. Iria ajudar significativamente e, portanto, seria mais um passo na elasticidade que o Estado teria para manejar o orçamento público, as despesas e investimentos do Estado.
Com a dívida do Rio Grande do Sul renegociada, qual deve ser a prioridade do novo governador em 2015?
O piso do magistério vai ter um novo aumento no início do ano, com a correção pelo Fundeb. O senhor defendia a mudança para que fosse corrigido pelo INPC, mas o projeto não foi aprovado. Continuará sendo impossível pagar o piso?
Continuará não sendo possível pagar.
Existe um passivo potencial, que pode virar precatório, dessa diferença da não aplicação do piso no quadro de carreira do magistério.
Pode ter. Dependendo da decisão que o Supremo tomar, isso vai interferir em todos os Estados e todas as cidades que não conseguem chegar a esse chamado piso Fundeb, que é um absurdo jurídico e financeiro na minha opinião. Sempre disse isso desde o começo. Isso pode gerar um passivo de desestruturar novamente muitos Estados que estão começando a se reorganizar financeiramente, como o nosso. Então, o Supremo vai ter que ter muita responsabilidade ao decidir isso.
Os municípios não estão conseguindo pagar também...
A maioria dos municípios, principalmente aqueles que tem quadro, os municípios que não tem quadro são mais pobres, não têm condições de chegar a esse piso. A não ser que a União crie um fundo especial de complementação, o que é uma medida altamente recomendável. A União criar um fundo para complementar recursos para a segurança pública e a educação em vários Estados.
Mas aí teria que se tirar a restrição que existe hoje, prevista na lei do piso, de que os outros Estados mais pobres podem se socorrer da União, mas o Rio Grande do Sul não pode.
O nosso não pode, é uma restrição totalmente absurda.
Na campanha o candidato Vieira da Cunha, que agora será secretário da Educação, cobrava do senhor por não trabalhar pela mudança da lei que impõe essa restrição. O senhor não tentou mesmo fazer essa negociação?
Essa negociação só sairá se tiver uma decisão presidencial. Isto não é daqueles recursos que você anuncia e que vão ser aplicados daqui a 20 anos, ou daqui um ano, dois anos. É uma transferência que pode ser feita fundo a fundo, é imediata. Então, é uma decisão difícil de ser tomada, que está na equação da questão federativa do país. Acho que esse caminho que o Vieira está apontando pode ser uma boa saída política para a questão. Mas de escassos efeitos práticos.
Até porque não beneficiaria só o Rio Grande do Sul.
O Rio Grande do Sul, malevolamente por alguns lá em Brasília e por alguns governadores "concorrentes", é visto como um Estado rico. Se você vai comparar o RS com o Piauí e com outros Estados que têm situações dramáticas do ponto de vista social, é verdade que somos um Estado rico. Agora, a estrutura financeira orçamentária do Estado é dramática, tão dramática como esses Estados mais pobres. Foram sendo criados passivos em 40 anos, 30 anos, que se tornam de repente insuportáveis para manejar a finança do Estado. É esse limite que está sendo rompido agora com essa lei que reestrutura a dívida do Estado, que é o primeiro grande passo para uma nova elaboração de um novo movimento.
O senhor adotou uma medida estrutural que foi a criação do Funprev. Isso é suficiente para resolver a equação da previdência no futuro ou será preciso adotar medidas mais radicais, como, por exemplo, mexer no critério de concessão das pensões?
Mexer no passado é impossível. É direito adquirido. Vários governos já tentaram isso e caiu no Supremo, inclusive porque os beneficiários dessa situação estão em todos os poderes. Então, tem que reestruturar, sim, o sistema de pensões. Eu tenho uma visão e, confesso, sou minoritário, inclusive na esquerda, de que aposentadorias e pensões deveriam ser instrumentos de distribuição de renda, e não de fixação de diferenciação de renda. Portanto, o financiamento das pensões e aposentadorias mais baixas, deveria ser de cima pra baixo, não de baixo pra cima.
Como se faria isso?
Meu projeto de lei que foi derrubado no Judiciário. Nós aumentamos as alíquotas para quem ganhava mais e mantivemos mais baixa as alíquotas dos que ganhavam menos. O ideal, na minha opinião, era que isso fosse exacerbado. Que o percentual de contribuição fosse crescente em relação ao valor do salário, para que a gente pudesse fazer transferência de renda para baixo. Em um social justo, isso seria uma coisa normal. No Brasil isso é impossível porque, normalmente, as decisões que são tomadas sobre isso, são tomadas em função de uma visão mais corporativa do que propriamente visando o interesse social.
Às vésperas de entregar o cargo, qual seria o seu conselho para o seu sucessor?
Eu não posso fazer isso... Eu prefiro desejar ao próximo governador que faça um bom trabalho.
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