Das águas do Guaíba surge o material que dá vida às obras expostas permanentemente na Praia dos Passarinhos, a 3km da Vila de Itapuã, em Viamão. Há 20 anos, o funcionário público federal aposentado Jefferson Muniz, 58 anos, retira o lixo encalhado nas margens e o transforma em arte popular.
A primeira delas, intitulada Erráticos Passos do Ser Humano, segue sempre em construção. Cada novo pé de calçado resgatado do Guaíba é colocado sob os galhos secos de uma árvore trazida da Praia da Pedreira, quando ela ainda não fazia parte da reserva de Itapuã. Instalada no centro da prainha, a obra desperta a atenção de quem passa pelo local.
- Cada novo pé que surge, vou colocando aqui. Quando estão mais destruídos, troco por outros que aparecem. São os passos perdidos no Guaíba - explica Jefferson.
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Homenagem às vítimas da Kiss
Junto com a criatividade, paciência é outra virtude de Jefferson exercida a cada novo projeto. Para finalizar a obra Motoqueiros do Além, uma homenagem ao espiritismo, foram necessários cinco anos. Cada equipamento que vinha boiando no Guaíba era resgatado pelo aposentado. Aos poucos, a peça foi concluída. Hoje, virou até hotel para as andorinhas que cruzam a região.
- Já recolhi madeira, pneus, restos de manequins, calçados e uma infinidade de materiais que podem ser reutilizados. As águas despejam tudo. E isso ocorre, principalmente, no inverno - revela o artista amador.
A próxima intervenção de Jefferson na praia será uma homenagem às vítimas do incêndio na Boate Kiss. Como ainda não está concluída, a obra é guardada em segredo no pátio de casa.
- Ainda levarei algumas semanas para finalizá-la. Estou esperando surgirem as peças (no Guaíba) - confidencia.
Protetor do meio ambiente
Mas não são apenas as obras expostas na Praia dos Passarinhos que contribuem para a arte e conservação do meio ambiente. Jefferson é conhecido pelos vizinhos como o protetor da região. Limpa a areia no verão e no inverno, corta a grama e recolhe o lixo deixado por visitantes. É um apaixonado pelo recanto que o acolheu depois de ter que deixar a Praia da Pedreira junto com os outros moradores, quando esta se tornou reserva ambiental.
Nos Passarinhos, ele fez dez lixeiras de pneus ao longo da orla. Com os restos de madeira, construiu pontilhões para os veranistas terem acesso facilitado à praia e, até, as duas goleiras da quadra improvisada de futebol de areia. Todos os anos, Jefferson dá nova pintura a cada uma das obras construídas em parceria com a Associação de Moradores da Praia dos Passarinhos, da qual é vice-presidente.
- Alguns me questionam porque fico cuidando tanto de algo que deveria ser preservado pela prefeitura. Só respondo: quando vejo uma criança se divertindo por aqui, sei que vale a pena - comenta.
Apaixonado pelo ofício
Mesmo sem jamais ter frequentado algum curso ligado às artes plásticas, Jefferson conta que sempre gostou do tema. Leu muito sobre ele e confessou ter um parente distante, e famoso, que tornou-se exemplo por trabalhar com materiais inusitados como lixo, alimentos e poeira. Jefferson diz ser primo em terceiro grau de Vik Muniz, um dos mais importantes artistas plásticos brasileiros da atualidade. A assessoria do artista plástico, nascido em São Paulo, informou que Vik não lembra de Jefferson, mas como a família é muito grande, ele não descartou o parentesco distante.
- A família dele (Vik) se criou no Sudeste. Tenho um irmão, morando no Rio que tem contato com estes parentes. Mas sigo outro caminho. Não sou artista, sou um curioso pelas artes e um apaixonado pela natureza - finaliza Jefferson.
Um artista popular
Nem só aqueles que tiveram a oportunidade de estudar Arte ou que tiveram contato com grandes obras produzem arte. Quem não teve o acesso a materiais artísticos ou a estudos específicos, mas insiste em dar forma a suas ideias e sentimentos - como é o caso de Jefferson - produzem a chamada arte popular.
A convite do Diário Gaúcho, fotos das obras de Jefferson foram analisadas pelo professor da UFRGS e doutor em História, Teoria e Crítica de Arte Eduardo Veras.
- Em casos como o de Jefferson, talvez mais importante do que avaliar se o que ele faz é ou não é arte, ou se essa produção tem ou não tem valor estético, nos caiba entender tanto o processo de criação do autor quanto como isso repercute na comunidade em que ele vive - explica o professor.
Um exemplo desta repercussão é uma obra sobre a violência contra as mulheres, que com objetos como cadeados, serrote, facas e correntes, pede uma maior conscientização da sociedade para o tema. Junto ao trabalho, é divulgado o telefone para denúncias de agressões, o 180.