- Bê, como tu não me convidou para a 1ª Comunhão?
- Mas eu não vou fazer, tia.
- Mas como, tu rodou então?
- Não, eu passei, mas o pai não vai estar aí, tem que levar camiseta branca e eu não tenho. E meus coleguinhas tudo vão fazer festa, e eu não tenho nada.
- Não seja por isso, tu sabe que lá em casa nós damos um coice numa moita e sai um monte de gente (para fazer festa).
- Sério, tu faz uma festa para minha 1ª Comunhão?!
E assim Bernardo Uglione Boldrini, 11 anos, teve uma festa de 1ª Comunhão, em novembro de 2013, em Três Passos, com mais de cem pessoas presentes - nenhum familiar. Comeu churrasco, ganhou presentes, fez fotos. O episódio do abandono do menino pela família no final de semana da comunhão foi um dos que vierem à tona depois dele ser assassinado, em abril.
Assim como nessa história, em várias outros momentos da vida de Bernardo ele teve o amparo daquela que queria ter como sua nova família: os Petry. Era com o casal Juçara e Carlos Petry que ele desfrutava uma vida de menino comum, com pai, mãe, irmãos mais velhos, com tema para resolver, com brincadeiras, com jogo de computador, com comemorações, com aventuras na cozinha, com mergulhos na piscina e com a chave de casa e a senha do portão, feita por ele próprio.
As falhas na rede de proteção que não salvou Bernardo Boldrini
"Não estávamos tratando com um pai 'infrator'", diz promotora sobre Leandro Boldrini
Não se indicava existência de risco concreto à vida de Bernardo, diz juiz de Três Passos
Simone Müller: "Se o juiz caiu na lábia do Boldrini, como nós não íamos cair?"
Leia todas as notícias do Caso Bernardo
Leia todas as últimas notícias de Zero Hora
- Ele achava o máximo apertar os botões e entrar, porque na casa dele ele não tinha como entrar - recorda Juçara.
Quando foi avisada pela igreja de que Bernardo não faria a comunhão, Juçara rumou para a escola para falar com o menino e saber o motivo descrito acima. E logo tratou de organizar uma festa e comprar a roupa branca que ela precisava. Bernardo acabou ganhando dois pares de tênis para o evento - um preto e um amarelo. Para agradecer o carinho dos amigos, usou um de cada cor. E era quase sempre assim na vida de Bernardo, desde que perdeu a mãe, em 2010.
Bernardo estava mal em matemática? A escola ligava para a tia Ju e então ele estudava a tabuada com o tio Carlinhos. Bernardo estava sem lanche? Pega, anota e tia Ju paga. Bernardo estava sem uniforme, a tia Ju faz na confecção. Bernardo tem atividade ou apresentação na escola? Tia Ju vai participar, ou o tio Carlinhos, ou a Tayná (filha da Ju e do Carlinhos) ou uma das irmãs da Ju, enfim, algum Petry estava sempre lá. E essa era a família que Bernardo queria para ele. Foi isso que ele disse a autoridades quando procurou o fórum relatando maus-tratos e pedindo para trocar de família.
- Os conselheiros tutelares disseram que o Bê ia para uma casa de passagem. Nós dissemos várias vezes que se a Justiça tirasse ele do pai e ele não pudesse ficar com os parentes, nós íamos atrás - lembra Juçara.
Juçara Petry coloca flores na residência dos Boldrini (Foto: arquivo pessoal)
Nos Petry dezenas de fotos e de lembranças contam esse outro lado da vida de Bernardo, a vida feliz. Com eles brincava de arrumar a mesa do almoço, fazia pão e comia massa crua, experimentava receitas, cortava as unhas, aprendeu a fazer barba (mesmo que ainda não tivesse), fazia trabalhos escolares. Um deles ainda está no computador dos Petry. A turma da escola fez um passeio às ruínas de São Miguel, mas Bernardo não pode registrar imagens porque a madrasta, Graciele Ugulini, o proibiu de levar a máquina fotográfica. Juçara pesquisou na internet cada item necessário ao trabalho e reconstituiu o passeio com ele.
Há poucas semanas, Juçara achou em um bloco de anotações um dos últimos bilhetes que havia deixado para Bernardo, que ficara dormindo depois dela sair para o trabalho: "Be, tem yogurte na geladeira. Leva esta chave". Bernardo chegava a se apresentar, brincando, como o "filho mais novo da Ju".
- O que me deixa aliviada é que quando ele estava conosco, ele estava bem, não estava passando aquele martírio. Mas, meu Deus, quantas vezes tirei ele daqui e levei para lá (de volta para casa)? - diz a comerciante.
Um dos últimos bilhetes que Juçara deixou para Bernardo (Foto: Diego Vara)
Os Petry encabeçam uma corrente que clama por Justiça. Fazem cartazes, organizam comemorações - como a dos 12 anos de Bernardo, ocorrida em 6 de setembro. Também é Juçara que cuida das homenagens deixadas na frente da casa dos Boldrini, que segue fechada. Em meio à dor da saudade, Juçara pede uma reflexão sobre o sofrimento a que possam estar expostas outras crianças.
- É triste a gente ver e ouvir uma situação dessas que ele passou e não falou nada para nós. Deve ter outras crianças passando por essa situação, com medo, caladas, acuadas. E o que a gente pode fazer para isso não acontecer com outras crianças, de todas as classes?
Confira a galeria de fotos de momentos de Bernardo com os Petry