José Arceleu Silva, 58 anos, servente de pedreiro, não é um homem de posses. Mas perdeu tudo pela segunda vez, em menos de três meses.
Ilhado devido ao rompimento do dique que represa o Rio Gravataí, no final de agosto, ele não esperava passar por tamanho dissabor em um intervalo tão pequeno. Desta vez, virou vítima da chuvarada.
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O relógio marcava 9h, ontem, quando a água invadiu sem cerimônia a pequena casa de dois quartos, na Vila Farroupilha, zona norte da Capital. José Arceleu nada pôde fazer a não ser retirar a mulher, Carlinda, que convalesce de um Acidente Vascular Cerebral. Abrigou-a com uma vizinha.
- Não tenho onde dormir - lamentou, já no final da tarde, quando a água gelada e barrenta batia na altura do joelho.
E, se dormisse, seria em cima de uma cama transformada em ilha e habitada por pilhas de roupas e outros pertences de pequeno porte, além de alimentos. Porque o servente de pedreiro teme arrombamentos, imagina o pior ao pensar na mínima chance de alguém entrar na residência - como aconteceu no episódio do dique - e levar itens a salvo da água.
Neste caso, enquadram-se duas pequenas TVs, um DVD portátil, um ventilador, quatro gaiolas com passarinhos, aparelho de som, um pequeno sofá. Há duas geladeiras, e ambas se foram. Uma delas boia no meio da sala de paredes nem tão brancas e com marcas do nível dágua. A geladeira se move sozinha, agitada pelas ondas provocadas pelos passos dentro do imóvel.
O cenário é surrealista. Uma bicicleta junto à porta, água acima das rodas, emoldura a entrada. Ao lado da entrada do quarto, um armarinho de madeira, submerso, espera pelo apodrecimento. Ao vê-lo, José Arceleu se emociona:
- Isso eu ganhei.
Servente quer mudar de casa
Faz pouco tempo, depois da enchente do dique. Agora a tristeza toma contornos de raiva. José Arceleu emenda, quase às lágrimas, que retirou o armarinho do lixo.
E aí ele enfurece. Desafoga o sentimento de quem, pelas próprias palavras, faz parte de uma realidade esquecida na maior parte do tempo - à exceção das eleições. Homem simples, passa a ponderar sobre o sistema político. Questiona a necessidade do voto, considera este instrumento inútil. As visitas - e ele generaliza, reclama de prefeitos, vereadores, deputados - só acontecem em época de eleições.
Ontem, nem pensar. E se alguma autoridade - ou quem quer que fosse - visitasse a casa de José Arceleu, teria de enfrentar uma lâmina de cerca de 40 centímetros de água em um beco, a continuação da Rua Domingos Antônio Santoro, onde nem um jipe consegue entrar. Encontraria uma casa de material, de cor branca e de janelas azuis, com uma pequena cerca de ferro submersa rente à fachada. Ao lado do número, consta - por ironia - uma marcação do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae).
Um pouco mais calmo, José Arceleu afirma pensar em mudança do endereço no qual vive há mais de 30 anos. Imagina dificuldades por falta de dinheiro e, claro, a consequente desvalorização de um local alagado com frequência. Vendê-lo seria difícil. Nem por R$ 10 mil, calcula. E ele novamente ergue o tom de voz e dispara uma frase crua na essência:
- Somos tratados como animais por esses políticos. Não somos tratados como gente.
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