O teórico da literatura Jonathan Culler escreveu, certa vez, que o ofício da interpretação envolve um jogo no qual se questiona sobre o que trata realmente uma obra. Não valem respostas óbvias do tipo "Hamlet é sobre um príncipe na Dinamarca". Estamos falando de elaboração reflexiva. Pode-se dizer, por exemplo, que trata do colapso da ordem mundial elizabetana, do medo que os homens têm da sexualidade feminina ou da incerteza dos signos (os exemplos são de Culler).
Uma encenação teatral, que também é uma forma de interpretação de texto, deve igualmente participar desse jogo, especialmente no caso de clássicos que são frequentemente remontados. Um novo Hamlet, a peça mais célebre da história da dramaturgia, deve acrescentar algo a respeito do entendimento que temos da obra. A versão do diretor Ron Daniels, que estreou curta temporada em Porto Alegre na quinta-feira, no Theatro São Pedro, chegou com a hipótese de que Shakespeare deve ser lido à luz da atualidade.
Alguém poderia argumentar que não se trata de uma tese muito original; afinal, um clássico, por definição, é um texto cuja atualidade é constantemente renovada. O que diferencia o Hamlet de Daniels de outros é a maneira como ressalta essa contemporaneidade. A tradução, assinada pelo diretor e por Marcos Daud, encontra uma posição intermediária que não resvala para o rebuscamento formal nem, no polo oposto, para uma informalidade exagerada. É um feito importante. Nos últimos anos, o público porto-alegrense testemunhou tentativas bastante desastradas de popularizar Shakespeare que resultaram involuntariamente cômicas. Não é o caso aqui. A tradução é fluida. Os 15 atores proferem o texto com clareza, e nenhuma informação é perdida. É inegável que a poesia fica de fora (no original, Hamlet fala ora em verso, ora em prosa), mas a tradução é um jogo de ganhos e perdas. Daniels recupera certo humor, que aparece especialmente no carismático Polônio interpretado por Sylvio Zilber e também no Hamlet de Thiago Lacerda.
As partes do protagonista correspondem a quase 40% da peça, segundo o crítico Harold Bloom. Por isso, um príncipe da Dinamarca satisfatório é o que se espera de uma boa montagem, e Lacerda cumpre a missão honrosamente. O desempenho do ator é superior ao extravagante Calígula que representou na Capital, em 2010, com direção de Gabriel Villela. Seu personagem é passional, vívido, irônico. Transita entre a loucura e a sanidade com desenvoltura.
Uma das curiosidades da montagem é a economia da cenografia, composta por uma cortina ao fundo e outra utilizada ocasionalmente mais à frente, ambas lembrando uma noite nublada. Os demais elementos são pontuais: a cama de Hamlet, as cadeiras da plateia da peça dentro da peça, o leito de Gertrudes (Selma Egrei), a cova de Ofélia (Anna Guilhermina). Os figurinos são contemporâneos, com sobriedade. Vestidos assim, fica claro que esses personagens são humanos como nós.