Ao completar 10 anos em vigor nesta sexta-feira, o (agora já nem tão) novo código civil brasileiro carrega consigo o reflexo de grandes transformações sociais no país ao longo do século 20 e se prepara para encarar os desafios que se avizinham nos próximos anos.
Criticada à época por não avançar em áreas vitais como união homossexual e células-tronco, a lei que regula o dia a dia dos brasileiros e reduziu a maioridade de 21 para 18 anos consolidou um modelo de Justiça mais igualitário, menos materialista e voltado ao respeito às pessoas e à sociedade.
Os 2.046 artigos do código sancionado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso um ano antes da entrada em vigor (após tramitar durante 26 anos no Congresso), substituíram normas da legislação anterior, datada de 1916, que previa, entre outros pontos, que o chefe da família era o pai, que a guarda dos filhos era prioritariamente da mãe e que o marido poderia desfazer o casamento caso descobrisse que a mulher não havia se casado virgem.
- O (novo) código traz um capítulo, logo no início, sobre direitos da personalidade, indicando sua opção pelo valor da pessoa enquanto ser e não apenas enquanto proprietário de bens. A mensagem que isso passa é muito importante e mostra uma mudança de perspectiva em relação ao código anterior, que tinha no direito de propriedade sua espinha dorsal - afirma o desembargador do Tribunal de Justiça do Estado e professor da Faculdade de Direito da PUCRS Eugênio Facchini Neto.
Ainda que não tenha sofrido alterações significativas no texto de seus artigos ao longo da década, a lei atual deixa espaço para que o juiz se valha, para resolver um caso, além dos princípios gerais de Direito, dos hábitos da sociedade na interpretação do código.
- Quanto maior o número de fontes, mais democrático fica o Direito. Constituição, legislação, usos e costumes, tratados internacionais, doutrina, jurisprudência devem ser levados em conta na interpretação do código, permitindo a sua constante oxigenação - explica o professor Daniel Ustarroz, da Faculdade de Direito da PUCRS.
Código em permanente atualização
Na avaliação do desembargador Eugênio Facchini Neto, o código civil não é feito de uma só vez, ele continua a ser construído diariamente. O desembargador destaca que nem sempre há necessidade de alterar a lei em relação a certos temas, pois as jurisprudências (decisões judiciais que firmam um entendimento sobre determinada questão) podem se encarregar de nortear a evolução do Direito.
- Na medida em que os juízes tentarem aplicar os princípios gerais do Código Civil com os olhos voltados às necessidades das pessoas e da sociedade atual, ele será constantemente atualizado sem a necessidade de frequentes reformas - concorda o professor Daniel Ustarroz, da Faculdade de Direito da PUCRS.
O que mudou e onde pode avançar
GRANDES MUDANÇAS
Confira algumas das principais mudanças trazidas pelo código sancionado em janeiro de 2002 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (as normas entraram em vigor em ano depois):
- Casamento
Homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pela família. Antes, a mulher assumia a condição de companheira, consorte e colaboradora do marido e competia ao homem sustentar a família. Parte das modificações já haviam sido introduzidas pela Constituição de 1988.
- Maioridade
Pelo código de 1916, a maioridade civil era aos 21 anos. Com o novo código, a maioridade passou a ser aos 18 anos. Passaram a ser relativamente incapazes os maiores de 16 anos e os menores de 18 anos. E continuaram absolutamente incapazes os menores de 16 anos.
- Filhos
Antes definida como da mãe, exceto em casos particulares, a guarda dos filhos passou a ser do cônjuge que tiver "melhores condições" de educar a criança. A nova lei também abriu espaço para que os juízes privilegiassem a guarda compartilhada dos filhos.
GRANDES DESAFIOS
Muitos temas não foram contemplados no novo código, o que abre espaço para que a Justiça decida com base em outras fontes do Direito, como leis especiais, tratados internacionais ou a jurisprudência:
- União homossexual
Em 2011, o STF julgou a legalidade da união estável gay como entidade familiar, com todos os direitos e deveres da união estável heterossexual. Como a Constituição prevê a conversão da união estável em casamento, abriu-se a possibilidade de consolidação do casamento gay. No mesmo mês, duas gaúchas obtiveram esse direito no STJ. O tema, entretanto, não encontra consenso na Justiça.
- Bioética
Mesmo que já exista jurisprudência no Supremo Tribunal Federal a respeito de alguns aspectos ligados à bioética, como no caso da pesquisa com células-tronco, ainda há diferentes aspectos relacionados ao tema que esperam por soluções definitivas, como a eutanásia, ortotanásia e alguns tipos de fertilização extrauterina.
- Comércio eletrônico
O e-commerce não está regulado no novo código civil brasileiro, mas existem anteprojetos em tramitação no Congresso Nacional para regulamentar o assunto. A probabilidade maior é que o comércio eletrônico entre no Código de Defesa do Consumidor (um projeto de lei no Congresso nesse sentido está em tramitação).