Vida de circo é itinerante - e, por isso, fácil de montar, desmontar, dobrar e guardar. Um colosso como Varekai, do Cirque du Soleil - que ergueu suas tendas dia 19 em Porto Alegre, no estacionamento do BarraShoppingSul, para uma temporada de cinco semanas iniciada na quinta-feira -, atravessa o mundo em 65 contêineres.
O bagageiro com as dimensões de um universo de fantasia tem figurinos, cenários, cordas e trapézios, além de 2,6 mil cadeiras, picadeiro e sistemas de som e luz. Até banheiros, máquinas de lavar roupa e panelas viajam com o Cirque. Ícaro, o homem com asas que protagoniza o espetáculo, é capaz de voar - mas precisa também de roupas limpas.
Durante os preparativos para uma sessão especial e com entrada franca para estudantes, a reportagem de Zero Hora acompanhou o trabalho incessante dos 170 artistas e técnicos, de 32 nacionalidades, que fazem acontecer o show de números e truques impecáveis.
Não é incomum ouvir alguém por ali chamando o acampamento de casa. Ainda que todos durmam em hotéis nas cidades por onde excursionam, é debaixo das lonas que ganha vida a rotina de ensaios e aperfeiçoamento constante.
A área que o grande público não vê tem restaurante, marcenaria, lavanderia, escritórios e até escola - quatro professores ministram aulas em inglês e francês para 16 filhos de funcionários, em um curso certificado pelo governo do Canadá. O australiano Steven Bishop, o hilário palhaço, viaja com a mulher e os quatro filhos, e o circo custeia parte das despesas para que a família o acompanhe.
Estrangeiros arriscam idiomas
O inglês é a língua oficial e a mais ouvida no vaivém entre as barracas. Como o circo pode passar longas temporadas em um mesmo país - Varekai estreou no Brasil em setembro de 2011, em São Paulo -, é comum que os estrangeiros se aventurem, até com certa fluência, em outros idiomas. Em cada paragem, funcionários locais incrementam as equipes fixas.
- Minha casa é o mundo. Está aqui. É amarela e azul - explica Cynthia Clemente, relações-públicas venezuelana e guia do passeio de ZH pelos bastidores, num português com pouquíssimos percalços, apontando para a lona colorida.
Também falando em português, Pablo Jimenez, espanhol de Tenerife e um dos quatro chefs no comando da cozinha internacional, explica o funcionamento do refeitório que serve 300 refeições diárias, do café da manhã ao jantar. Na quarta-feira, o cardápio do almoço oferecia arroz, abacate recheado, batatas com vagem e saladas, além de um bufê de ingredientes e condimentos para sanduíches.
Um código divertido afixado na parede instrui os convivas: uma carinha de palhaço vermelha indica as comidas mais gordurosas e calóricas, a verde sinaliza os pratos mais saudáveis, e a amarela, o meio-termo. Para saciar apetites tão variados, há dias temáticos, com destaque para as culinárias asiática e europeia. A cada estreia em uma nova cidade, o menu é mais elaborado, para marcar a transição e empolgar a trupe.
- A ideia é trabalhar com a maior variedade possível. A comida não é refinada, é do tipo caseira. Massa e frango à parmegiana são os preferidos - explica Jimenez.
A chamada Tenda Artística, conectada diretamente à principal, que recebe os espectadores, é onde tudo acontece - e se transforma. Figurinista, Marcel Bofill administra mais de mil peças de roupa e acessórios. Costureiras se detêm em ajustes e consertos, obedecendo sempre às regras padronizadas pela sede, em Montreal.
Prateleiras guardam máscaras e perucas com o nome de quem as usará, sempre na mesma ordem, para que os artistas não comprometam a precisão do show quando estão prestes a entrar em cena, no breu quase completo dos bastidores. O Cirque é irrepreensível até no escuro.
Supervisão física para os artistas
Massoterapeutas e fisioterapeutas se encarregam do condicionamento físico preventivo, do tratamento de lesões e do primeiro atendimento em caso de emergências. Há aparelhos de ginástica à disposição.
- Nosso trabalho fica mais difícil à medida em que se aproxima o final da temporada. Eles vão ficando cansados e se machucam mais - conta a fisioterapeuta Tracy Guy, da Austrália.
É nessa mesma tenda que os artistas se concentram para o grande momento da noite. Com uma sessão marcada para as 21h, o trânsito de pessoas se restringe muito a partir das 17h. Saem os seres humanos, entram os seres fantásticos, com adereços e superpoderes.
Tornike Zabakhidze, da Geórgia, está postado na frente do espelho retocando a pintura do rosto, que o ajudará a compor o personagem para as coreografias da Georgian Dance. Cada artista é também seu próprio maquiador.
- Há quatro anos, levava duas horas. Hoje preciso de 35 minutos - orgulha-se o bailarino de 27 anos, encantado com os dias ensolarados e quentes do Brasil.
Ele posa para fotos, e a relações-públicas já confere o relógio - até ela, com mais de seis anos de carreira no Cirque, precisa se retirar para que os 57 nomes do elenco se entreguem à preparação sem interferências.
- É quando a criatura nasce - define Cynthia.
Sem demora, Varekai vai começar.