Duas semanas atrás, ao subir em uma escada para buscar na despensa uma coberta que amainasse o frio, o advogado Luiz Fernando Doering, 26 anos, encontrou, na prateleira mais alta, um artefato esquecido: um pacote com 3 mil peças de um quebra-cabeças que forma o teto da Capela Sistina, pintado por Michelangelo.
Em meio ao distanciamento social por coronavírus, o brinquedo jamais desempacotado começou a ser montado com a irmã, a estudante de Direito Laura Doering, 22 anos, na casa no bairro Jardim Carvalho, em Porto Alegre. Enquanto deslizam as peças na mesa de seis lugares da sala de estar, os irmãos cuidam para que nenhuma caia no chão: o risco é que Puskas, o atento Schnauzer da família, faça alguma travessura que impeça a obra de ser terminada.
A brincadeira ajuda a esquecer as ansiedades da pandemia, mas há um toque pessoal: desde a infância, incontáveis quebra-cabeças foram montados com a mãe, falecida há dois anos após um câncer de mama. Retomar a atividade hoje aproxima-os, em um momento difícil, das boas memórias do passado.
— Fico tanto tempo nas redes sociais que é bom sentir a textura do quebra-cabeças nas mãos e ficar na paz. Quando se está há muito tempo procurando uma peça e ela encaixa direitinho, é uma sensação de alívio e de felicidade. Também me lembro da minha mãe: ela era muito organizada, separava as peças por cores e por formatos. Agora, eu tento assumir a posição dela — confidencia Laura.
Outros brasileiros também retomaram o hábito de montar quebra-cabeças para esquecer, ao menos por algumas horas, a pandemia que afeta 213 países, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, o Google registrou nas últimas semanas um aumento na procura pelo termo, enquanto a empresa brasileira de jogos Ri Happy viu um crescimento de três vezes na venda online do brinquedo a partir de 20 de março, segundo a revista Veja.
Nos Estados Unidos, a empresa Ceaco, uma das maiores do ramo no país, vendeu em um dia de março mais produtos do que no mês de dezembro, quando a oferta aumenta graças ao Natal, segundo a rádio NPR.
O quebra-cabeças surgiu na metade dos anos 1700 na Inglaterra como forma de ensinar o mapa do mundo em aulas de geografia, explica a historiadora Anne D. Williams no livro The Jigsaw Puzzle: Piecing Together a History (“O Quebra-Cabeças: Juntando a História”, em tradução livre). Dentre grandes amantes dos quebra-cabeças, segundo a autora, estão a Rainha Elizabeth II, Bill Gates e o escritor best-seller Stephen King.
O jogo tornou-se popular logo após a Grande Depressão de 1929 nos Estados Unidos – como sinal de que a História é cíclica, o passatempo novamente ganha força em mais uma crise mundial enfrentada pela humanidade.
Há algumas explicações para o aumento da procura. A mais óbvia é o combate à ansiedade: concentrar energia em um quebra-cabeças fornece uma pausa necessária em meio ao estresse de uma pandemia e às exigências de render mais com as supostas horas livres do isolamento social. O filósofo coreano Byung-Chul Han, no livro A Sociedade do Cansaço, alerta para o perigo de quem só se ocupa com atividades rentáveis, em uma espécie de autoexploração.
A saúde mental tem muito a ver com a capacidade de alegrar-se e de encontrar soluções para situações de conflito e frustrações".
IARA CAMARATTA ANTON
psicóloga
A outra questão é que montar quebra-cabeças traz uma positiva sensação de controle em meio a uma realidade sobre a qual não temos muito o que fazer, além de ficar em casa e aguardar o trabalho da ciência.
— Estamos diante de um quebra-cabeças mundial. As pessoas estão bastante assustadas. Diante disso, procuramos soluções para diminuir o nível de tensão e se divertir, o que é muito saudável. A saúde mental tem muito a ver com a capacidade de alegrar-se e de encontrar soluções para situações de conflito e frustrações — afirma a psicóloga clínica Iara Camaratta Anton, citando que dominó, jogos de tabuleiro, livros e filmes também podem ajudar a oxigenar a cabeça.
Ela faz uma analogia entre montar quebra-cabeças e o processo de digerir um trauma. Se o brinquedo exige visualizar uma imagem, distribuir peças e raciocinar até encaixá-las para chegar a um resultado, processar uma experiência difícil também: é preciso relembrar em uma cena específica, retomar as variáveis que estavam em jogo e buscar reflexões até chegar a uma conclusão que permita fazer as pazes com o passado.
Para além disso, montar quebra-cabeças pode reforçar o sentimento de comunhão e de afeto. Sentadas no chão do quarto de hóspedes ao redor de 5 mil peças, a analista de gestão de serviços Lúcia Rodrigues Fernandes, 30 anos, e a namorada, a servidora pública Lediani Chapuis, 30, tentam montar uma imagem do monte Fuji enquanto aproveitam para se conectar ao fim do dia, após o expediente.
— Eu e minha namorada gostamos muito de filosofar, então também é um momento para conversar sobre a vida, sobre projetos. É um espaço para a gente fazer uma terapia. Temos até uma comemoração: a gente fala “pic” quando montou algo. É muito legal ver tudo o que se montou em uma hora ou dia, ver que está construindo algo que, no final, formará um quadro na parede.
Dicas para montar quebra-cabeças
- Se você for iniciante, prefira quebra-cabeças com 500 peças;
- Primeiro, separe-as pela cor;
- Comece pelos objetos formados por cores pouco presentes. Se há um pássaro verde e, na figura, predominam cores quentes, monte primeiro o pássaro – isso trará uma sensação de vitória que motiva a continuar;
- Costuma-se montar quebra-cabeças das bordas para o meio do desenho.