Rachada politicamente, a França vive uma espécie de "trégua olímpica". A observação é do ex-jogador Raí, 59 anos, hoje cientista político em Paris. Ídolo do São Paulo e do PSG, ele acredita que as correntes de esquerda, direita e centro do país deram um tempo na acirrada disputa política do período pós-eleitoral em respeito aos valores olímpicos e aos atletas e turistas que já começam a chegar à capital francesa para os Jogos.
— A França viveu nas últimas semanas um clima de tensão, mas vivemos uma certa calmaria, uma espécie de paz cívica, ou uma trégua olímpica, em respeito aos turistas, aos atletas e aos valores olímpicos — disse Raí.
Ele atendeu a reportagem de Zero Hora durante um evento realizado pela Fundação Gol de Letra — que é de Raí e do também ex-jogador Leonardo — sobre políticas públicas para o esporte na Sorbonne, renomada universidade parisiense, onde, aliás, foram criados em 1894 os Jogos Olímpicos da Era Moderna.
Campeão mundial pelo São Paulo e pela Seleção Brasileira, Raí é uma celebridade na França, onde atuou por cinco anos defendendo as cores do PSG. Hoje, o ex-jogador se dedica ao estudo da ciência política e, no último mês de junho, concluiu um mestrado em Políticas Públicas na SciensePo, universidade de Paris especializada em Ciências Humanas e Sociais.
Apesar do momento político turbulento pelo qual passa a França, Raí está otimista em relação ao impacto da Olimpíada no país. O ex-jogador acredita que os Jogos trarão legados importantes aos imigrantes e aos refugiados, pela presença de atletas de diversas etnias e sobretudo pela Equipe Olímpica de Refugiados, que competirá pela terceira edição seguida e terá em Paris 36 atletas originários de 11 países diferentes.
— Isso, por si só, já é um ato político. E que, sem dúvida, traz a atenção para diversas crises. Para os refugiados, as perseguições, as guerras, os problemas sociais e a pobreza. É uma realidade para a qual a gente não pode se fechar. Obviamente a imigração é um tema delicado na Europa, mas é um tema que tem ser exposto e trabalhado de forma aberta, a partir de um movimento global, e não por só um país ou só um continente. E a Olimpíada chama a atenção para este tema específico. Espero que a partir daí surjam debates para a busca de uma solução conjunta, já que teremos o mundo inteiro presente aqui em Paris — avalia Raí.
A imigração foi um dos principais temas do debate político francês entre maio e junho, após o presidente Emanuel Macron dissolver o parlamento e convocar novas eleições. Apesar de a coalizão de esquerda ter liderado o segundo turno da votação, seguida pelo centro governista e pela extrema-direita, nenhum dos blocos conseguiu ainda formar maioria para indicar um novo primeiro-ministro, que, no regime semipresidencialista francês, governa em parceria com o presidente.
— Há ainda uma busca por uma composição política e isso faz parte da democracia. Embora haja essa trégua, as negociações estão fervendo. Mas acredito que as partes vão chegar a um acordo, respeitando a opinião do povo expressada no voto e com uma convergência entre as frentes que foram mais votadas (coalizão de esquerda e o centro governista). Acho que os dois lados têm que ceder para construir uma maioria de convergência e poder governar o país nesses próximos anos, e isso vai ser muito importante para que a esperança volte. Acho há uma desesperança ou uma preocupação afligindo a França que há muito tempo não afligia. Então, há uma responsabilidade nas mãos dos atuais governantes e dos parlamentares que foram eleitos agora — opina o agora cientista político Raí.
O desfecho das negociações para formação de um novo governo, porém, deve ficar para depois da Olimpíada. Afinal, a exemplo dos Jogos Olímpicos da Antiguidade, que suspendiam as guerras durante as competições, a França está agora vivendo uma trégua olímpica.
Confira a entrevista de Raí a Zero Hora em Paris:
Como alguém ligado à França e ao esporte, que legado você imagina que a Olimpíada trará para o país?
Raí: Estou muito feliz com a Olimpíada ser aqui. Eu mesmo participei da campanha há nove anos para a Paris conquistar o direito de sediar as Olimpíadas. Obviamente nem todo mundo está satisfeito, mas pouco a pouco esse legado está sendo concretizado. Não só em termos de evento, mas principalmente a divulgação da importância do esporte aqui na França e a democratização da atividade esportiva nas escolas. Todas as cidades menores. Acho que esse legado esportivo já existe, é concreto e veio para ficar. E vamos ter outros ainda pós Olimpíada. Claro que a França vive um momento político delicado, cheio de incertezas, mas são duas situações diferentes.
Você é hoje um estudioso da ciência política. E a França vive um momento político turbulento. Que impacto você imagina que os Jogos terão na política francesa?
É um momento no mínimo estranho. O presidente (Emanuel Macron) dissolveu o parlamento a poucas semanas das Olimpíadas, criando um momento de tensão no país exatamente em um momento de crescimento da extrema direita, o que causa uma tensão ainda ainda maior, até pelos valores difundidos, ou não difundidos, por este campo político. E isso acabou desviando um pouco a atenção nestas ultimas duas ou três semanas, o que não é bom. Criou um clima de tensão que não existia. Mas agora eu diria que estamos vivendo uma certa calmaria, uma espécie de paz cívica, em respeito aos turistas, aos atletas e aos valores olímpicos.
Você diria que a França, politicamente, está vivendo uma espécie trégua olímpica, a exemplo do que ocorria nos Jogos da Antiguidade?
Exatamente. Muito bem lembrado. Estamos vivendo uma trégua olímpica. Mas acho que o (Macron) correu um risco desnecessário, porque essa decisão (de dissolver o parlamento), certa ou não, poderia ter sido tomada depois dos Jogos Olímpicos. Mas agora, já com as eleições passadas, acho que há um respeito pela importância deste evento e pelo período de 100 anos após a última Olimpíada em Paris. Os franceses sabem a importância política e social deste evento no momento em que o mundo vive. Também não é só a França que está precisando de trégua, mas o mundo está precisando de trégua e, principalmente, valorizar tudo que a recreação dos jogos modernos prega de valores humanos e humanistas.
Os Jogos Olímpicos historicamente estão ligados a acontecimentos políticos na humanidade. Você acredita que esses Jogos Olímpicos podem ter algum impacto político a ser eternizado na história, seja para o bem ou para o mal.
Sem dúvida alguma, isso é do esporte de uma maneira geral, sobretudo os mais populares. E quando você junta com o movimento olímpico, sempre é um momento histórico que vai ficar marcado por imagens, por acontecimentos e por atitudes. Sem dúvida nenhuma, será um momento que vai deixar legados que a gente ainda não sabe e isso é um reflexo da sociedade. A Olimpíada é uma vitrine muito grande e é um reflexo do que é a sociedade e do que a sociedade está vivendo. E isso a gente não tem como fomo fugir. Mas eu, como um lutador engajado, ativista, mas um otimista inveterado, acredito que as Olimpíadas, neste momento, tem mais coisas a agregar do que qualquer outro tipo de impacto negativo. Vai ser uma Olimpíada em um país que defende os direitos humanos e que tem um histórico muito alinhado com os valores olímpicos. Então acredito que temos mais chances de viver um momento histórico positivo e que pode colaborar para os tempos que a gente está vivendo.
A Olimpíada tem a equipe de refugiados, além de atletas de diversas nações e etnias. Ela pode contribuir para os direitos dos imigrantes na França e em outros países da Europa?
Isso, por si só, já é um ato político. E que sem dúvida nenhuma, traz a atenção para a crise de diferentes tipos: de refugiados, de guerras ou problemas sociais, pobreza e perseguições. É uma realidade que a gente não pode se fechar. Obviamente a imigração é um tema delicado na Europa e até por isso há o crescimento de posições extremas. Mas é algo que tem que ser pensado, e as soluções têm que ser globais. Não é um país que vai resolver este problema com uma certa atitude. Não é se fechando que vai acabar resolvendo.
E como a Olimpíada pode ajudar nisso?
Acho que o tema tem que ser exposto, tem que ser aberto, mas também trabalhado de uma forma coletiva. Não por um país, não por um continente, mas a partir de um movimento global. A Olimpíada chama a atenção para esse tema específico. Assim como para outros, e, ao chamar a atenção, espero que também surjam debates para a busca de uma solução conjunta, já que a gente vai ter o mundo inteiro presente aqui em Paris na Olimpíada.
Além de ex-jogador, você há mais de 20 anos toma a frente de ações sociais através da fundação Gol de Letra. Como surgiu a sua relação com a ciência política e qual o teu objetivo ao ingressar nesta área?
Acho que surgiu de berço. Vem de família. Meu pai era um provocador, assim como minha mãe, que tinha origem pobre, veio do norte e do nordeste do Brasil e sempre fez com que a gente olhasse para a sua origem e conhecesse o país. A gente viajava de carro, três ou quatro dias de Ribeirão Preto ao Ceará e ao Pará, e nessas viagens ele ia nos mostrando a realidade do país e as injustiças. Um país cheio de oportunidades, mas um dos mais injustos. Então, essa provocação de reflexões políticas e sociais já vem de vem casa. Acho que o Gol de Letra, sem dúvida nenhuma, é um exemplo disso. Sempre quis isso. Era um projeto prático. Não queria só uma campanha ou ajudar. Eu queria estar no campo. E quando você entra com uma vontade de fazer o bem e compartilhar o que você construiu na sua carreira com outras pessoas, você entra em um projeto de solidariedade, mas percebe logo que você é parte também de um movimento político para buscar a melhoria da qualidade da educação, do acesso ao esporte para todos, de qualidade na educação, na saúde, na socialização e em tudo que o esporte pode trazer. Então, não deixa de ser um movimento político.
E a ideia de estudar ciência política?
Depois desses 25 anos, quis buscar uma reciclagem e me aprimorar nisso. Então, há dois anos comecei um mestrado de Políticas Públicas aqui na França. Terminei satisfeito, com um diploma, mas cheio de ideias. Não quero disputar eleição, mas sim influenciar em políticas públicas. Estudei nesses últimos dois anos ciências políticas e políticas públicas para ver como eu posso pegar essa experiência da luta de 20 a 25 anos e adaptá-la na escala de uma cidade ainda cidade pequena, que era (no mestrado) um projeto piloto, mas que pode vir a ser exemplo para outras cidades do país.
O que será da França após a eleição, sendo que nem direita, nem esquerda e nem centro conseguiram formar maioria para indicar um primeiro ministro?
Pelo que vejo, é a busca de uma composição política, e isso faz parte da democracia, buscar acordos e se tentar uma convergência de ideias para conseguir uma governabilidade. Embora tenha essa trégua, as negociações estão fervendo. Acredito que tem ainda mais dois anos e meio do Macron e que as partes vão chegar a um acordo, respeitando a opinião do povo expressada no voto e com uma convergência entre as frentes que foram mais votadas. Acho que os dois lados tem que ceder para construir uma maioria de convergência e poder governar o país nesses próximos anos. E isso vai ser muito importante para que a esperança volte. Acho há uma desesperança ou uma preocupação que que não aflige a França há muito tempo e que agora aflige. Então há uma responsabilidade nas mãos dos atuais governantes e de quem foi que foi eleito agora.