No começo de março, o Rio Grande do Sul garantiu mais uma vaga nos Jogos Olímpicos de Paris. E em uma modalidade pouco tradicional. Aos 27 anos, Geórgia Furquim, natural de Santa Maria, confirmou classificação no skeet feminino ao se garantir na final do Campeonato das Américas, em Santo Domingo, na República Dominicana.
A gaúcha terminou a fase classificatória em quinto lugar com 111 acertos de 125 pratos possíveis e ficou com a vaga olímpica porque as atletas do Chile, México e Peru já tinham a vaga, enquanto os Estados Unidos têm outras duas atletas garantidas nos Jogos.
— Está caindo a ficha agora. Porque é evidente que esse tipo de situação em que a gente consegue compartilhar o nosso esporte para outras pessoas, é o momento que a gente percebe que nós estamos em um momento mais alto até então. Lógico, vai ter a participação na Olimpíada, tem muito treino até lá, tem uma preparação toda para chegar lá. Mas é evidente aquela satisfação que se sente depois de conquistar algo que é inédito — disse em entrevista à GZH.
Com 10 anos de experiência na modalidade, a, agora, atleta olímpica, começou no tiro esportivo aos 17 anos, quando recebeu as licenças para exercer o esporte. Antes, se familiarizou com o tiro esportivo acompanhando um tio, acostumado a atirar. Foi amor à primeira mira.
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Mas a vida do atleta "amador" nunca é fácil. Precisou abandonar a carreira para se dedicar aos estudos, mas faltava algo. Voltou a atirar e pouco mais de dois anos, conseguiu a vaga olímpica.
Confira a entrevista completa com Geórgia Furquim
GZH - Como aconteceu essa sua classificação e como foi essa construção de uma vaga olímpica?
Geórgia Furquim - É muito emocionante. Eu retornei às competições em 2022. Basicamente, tive a preparação para os Jogos Sul-Americanos e todo o 2023 para os Pan-Americanos. Eu acabei não conquistando a vaga no Pan, mas a gente ainda tinha essa última carta na manga, que era o Campeonato das Américas de Tiro Esportivo. E nesse torneio, nós conseguimos, com muito trabalho, trabalho mental muito grande, a nossa vaga. Durante todo esse processo, tive muito apoio da Confederação Brasileira, apoio do Bolsa Atleta, apoio do Comitê Olímpico Brasileiro, que é a nossa base do nosso planejamento para esses grandes eventos. Temos vários eventos, treinamentos ao longo do ano, mensais. Nós temos também os clubes que nos apoiam. Eu tenho uma ponte entre o Rio de Janeiro, o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Faço isso entre esses três Estados, até para diversificar a cancha. Então, a gente faz um planejamento e tem essa possibilidade de ampliar as nossas experiências. No nosso esporte, o visual, o fundo, é superimportante. Ter essas experiências em épocas diferentes do ano também é importante. Então, pensa que a gente tem vários cenários diferentes e isso é um ponto muito diferencial desse último campeonato que eu participei, porque a gente pega canchas muito fáceis e depois a gente tem canchas superdifíceis.
Como foi esse campeonato na República Dominicana?
Nesse de Santo Domingo foi bem difícil, a gente tinha uma variação muito grande. Em compensação, isso era uma das partes do meu treinamento. Aqui em Viamão, na verdade, tem um local onde possui essa variedade de fundo, então, não é uma coisa superestranha, mas tudo é um processo de continuidade. A gente vai se familiarizando, vai tendo continuidade no trabalho, um trabalho que envolve físico, mental, de recuperação, de fisioterapia, de nutrição. É todo um planejamento, apesar de ser tratado aqui no Brasil como um esporte amador. Além de profissionais e estudantes, somos atletas também. É uma continuidade da nossa vida. Infelizmente, não pode ser a principal função porque a gente gosta muito do que a gente faz.
Explica um pouco melhor como é a tua modalidade dentro do tiro esportivo para quem não tem tanto conhecimento?
Diferente da carabina e da pistola, que são alvos estáticos, o skeet e a fossa olímpica são modalidades onde o nosso alvo é um alvo dinâmico. Uma máquina lança os elementos. A gente faz um sinal sonoro, pode ser "ah", "foi", cada atirador tem essa particularidade, isso normalmente é muito engraçado.
Qual é a tua?
A minha normalmente é "foi". Quando me perguntam isso, eu sempre fico na dúvida porque na minha cabeça é vai, mas eu falo foi na hora. É bem engraçado isso. Mas às vezes é um "uh", "ah", uma coisa assim. E troca. É muito legal que dependendo da língua da pessoa, troca também. Os espanhois falam "pull", então é bem divertido isso. A gente emite um sinal sonoro e a máquina tem um tempo de reação. Na minha modalidade, eu penso em um semicírculo, onde nas extremidades existem uma casa em cada, com uma máquina em cada uma. Quando eu faço esse som, a máquina tem de 0 a 3 segundos para lançar ao mesmo tempo o prato. Então, tu não sabes quando, mas tu sabes qual que é a trajetória. O efeito do vento e das condições, eles alteram também. Eu percorro sete posições ao decorrer desse semicírculo e uma na posição central entre as duas casas. Normalmente, quando ocorre o disparo, a gente dispara sempre para frente, o local seguro, lógico, e tem uma posição central que é o prato que a gente atira mais perto.
Quando é que caiu a ficha que tu tinhas conquistado a vaga para os Jogos de Paris?
Está caindo a ficha agora. Esse tipo de situação em que a gente consegue compartilhar o nosso esporte para outras pessoas, é o momento que a gente percebe que nós estamos em um momento mais alto até então. Lógico, vai ter a participação na Olimpíada, tem muito treino até lá, tem uma preparação toda para chegar lá. Mas é evidente aquela satisfação que se sente depois de conquistar algo que é inédito. É a primeira mulher do tiro ao prato a conquistar uma vaga para a Olimpíada. Isso é de arrepiar. Assim, acredito que as pessoas tenham essa vontade dentro delas de ser a primeira a fazer alguma coisa. E eu me sinto muito honrada e orgulhosa de conseguir isso. É muito gratificante, principalmente com essas reviravoltas que a minha vida teve. E eu consegui em 2022 regressar para o esporte. Isso é um tempo muito curto para conseguir uma vaga. Apesar de eu ter feito uma preparação com um tempo maior voltar agora, conseguir chegar no mesmo nível e superar, é incrível.
E quando, lá atrás, em algum momento, tu pensaste assim: "eu vou praticar tiro esportivo"?
Foi muito natural. Meu tio Rafael praticava a modalidade de tiro ao prato, mas não olímpica. Dentro da modalidade de percurso de caça, que a Federação Gaúcha de Caça e Tiro organiza, eu o acompanhei desde pequena. Para eu não ficar muito tempo dentro do apartamento, a minha família dava um jeito de eu ter alguma atividade fora. E dentro dessas atividades que eu tinha fora, junto no ambiente mais de natureza, com a família e tudo, surgiu essa oportunidade de eu ir junto com ele nas provas. E ele arrumou uma função para mim. Ele fazia os disparos e a cápsula, depois de disparada, fica só o plástico com o metal. E ele alcançava para mim e eu colocava dentro da caixinha. Não precisava disso. Era só para me dar uma função para não ficar atrapalhando muito. À medida que eu fui crescendo, me despertou a vontade de experimentar o esporte porque eu já estava ali no meio. Ficava observando e imaginando. Desde criança estou nesse meio.
Como é que foi essa parada até 2022? O retorno para o esporte e a preparação na reta final até as Olimpíadas?
Sim. Meu intervalo foi para fazer vestibular, Arquitetura e Urbanismo, vontade de focar na profissão e tal. A gente chegou ao consenso de que era o momento ideal. Só que, depois que eu estava em um nível muito alto (dentro do esporte), foi muito difícil parar. Precisei lidar com um certo luto. Acabei entrando na Ufrgs, o que me tomou mais tempo ainda. Treinar já não era uma opção mais. Depois do Pan, eu parei. Chegou um momento que eu não estava completa. Foi fundamental retomar essa atividade para me reencontrar. A minha alegria, aquele brilho que eu tenho, ele vem pelo esporte.
Aliás, para quem estudou Arquitetura e Urbanismo, Paris está legal, né?
Notre-Dame que o diga, Eiffel que o diga.
E, aliás, tu consegues fazer essa relação do que tu estudaste, né? E que poderá ser lá na frente a tua futura profissão com a atividade de atleta. Tu consegues fazer isso de trazer esse teu olhar para exatamente o que tu escolheu?
É muito natural isso também. É muito difícil depois de tu ter todas as cadeiras de história, tu chegares num local e não perceber. Grita muito, fica tudo muito evidente. E tu diz assim, "Nossa, que lindo isso aqui, eu estudei em tal ano, em tal semestre, com tal professor, entendeu?" Isso é incrível. Tu chegas e dizes "Nossa, isso eu tinha visto em livro e agora está na minha frente".
Como é que vai ser essa preparação? Como vai lidar com esse período de quatro meses até Paris?
Estamos fazendo a preparação e nela consta treinos superintensos e diários. A gente tem o treino em pedana. Pretendo ir ao COB para fazer aquelas análises biomecânicas, porque como a minha conquista foi muito próxima da Olimpíada, é tudo muito corrido agora. Mas tudo está sendo planejado e feito bonitinho. Tudo revisto por mês. Como é que vai acontecer? Treinos diários no clube, ou seja, muito tiro e treinamento técnico lá. Tem toda a preparação física. O meu trabalho de academia é focado para o meu esporte. É bem legal. A questão da fisioterapia, para nós que temos a questão do recuo, é fundamental. Todo mundo brinca que o tiro esportivo é muito mais mental do que técnico. E isso é uma grande verdade porque tecnicamente, mesmo que você esteja muito bem tecnicamente, se tu não tiveres uma cabeça sã e equilibrada, tu não consegues desempenhar adequadamente. A nutrição teve um papel fundamental nessa competição e principalmente nos meus treinamentos por causa da hidratação.
Quando você fecha o olho, vai descansar, mentaliza o quê?
Toda vez que a gente fecha um ciclo, existe toda a parte de agradecimento daquilo que aconteceu. Isso para mim é muito importante. Inclusive, em Santo Domingo, eu fui lá na primeira catedral das Américas e agradeci pessoalmente. Isso para mim foi um fechamento, um encerramento de ciclo bem bonitinho e ir mentalizando já que existe um novo trabalho, existe uma nova preparação que, apesar de ser uma continuidade, acaba tendo uma série de fatores diferentes que eu até então não tinha e que eu preciso lidar, que eu preciso mentalizar não só o que eu já vinha fazendo, como agrupar todas essas coisas e digerir isso da melhor forma possível.
Para mim, funciona muito a questão de gerar um pensamento, uma coisa que me dê segurança de que aquilo que eu estou fazendo é o suficiente. Eu faço todo o possível para ter um bom desempenho. Ficar naquela posição em que tu duvida de si mesmo, para o tiro esportivo, na minha modalidade, que é o skeet, não é compatível. Tu tens de entrar sem se defender daquela atividade que tu estás fazendo. Essa foi a maior mensagem que eu tive nessa última competição porque foi uma competição que o meu rendimento em pontuação foi muito abaixo do que eu esperava, do que todo mundo esperava, e ainda assim nós conseguimos.
Eu me deparei com uma parte que eu estava tecnicamente executando muito bem e o resultado não vinha. Isso foi minando a minha confiança. Eu cheguei no segundo dia de prova, o dia final da prova, com todo mundo empatado, todas as meninas que não tinham vaga ainda empatadas, e aquela última rodada eu ia definir tudo. Eu estava me sentindo muito fraca, tive de entrar nesse processo de visualização e reforçar. Eu já tinha passado por uma série de outros episódios que me fizeram crescer em outros aspectos, e nesse de enfrentar as coisas com mais peito, mais de frente, dizia assim, bate no peito, na prova eu tive que bater no peito. Criar expectativas traz uma frustração, então a gente consegue trabalhar num nível onde não gere muita ansiedade e foque no presente. Todo dia eu vou ter o meu cronograma e eu vou seguir ele de modo muito consciente. Sou bastante ansiosa, tive de meditar muito nesses últimos tempos, até para lidar um pouco com tudo isso que é novo para mim.
Como é que faz para lidar com a expectativa e ao mesmo tempo desfrutar dos Jogos Olímpicos?
Isso eu não sei te responder ainda, porque eu não passei por isso. Mas até chegar lá, eu entendo que aproveitar o processo vai ser a chave. Então, tu vais chegar lá e o que eu for viver lá vai ser a consequência de todas as boas decisões que eu tomei até lá.