Existem cenas esportivas que ficam gravadas na memória das pessoas. Há uma semana, mais um desses momentos se materializou durante o Mundial de ginástica artística, na Antuérpia. Simone Biles, dona de 30 medalhas em mundiais e sete olímpicas, simulou passar uma coroa da sua cabeça para a de Rebeca Andrade. Não à toa. A brasileira foi a principal adversária da norte-americana durante a disputa da competição na Bélgica e conquistou cinco medalhas no principal campeonato antes da Olimpíada — foram cinco, uma de ouro, três de prata e uma de bronze.
Também na Bélgica, mas em Gent, Danielle Hypolito conquistou a prata no solo, medalha que deu o pontapé para o crescimento brasileiro. Desde 2001, quando o Brasil subiu pela primeira vez ao pódio, já foram 25 medalhas do país no maior evento anual da modalidade, oito de ouro, nove de prata e oito de bronze. Passados 22 anos, o país assumiu um novo papel no cenário da ginástica artística, com um crescimento consistente nas principais competições. O país fechou o Mundial deste ano só tendo ido menos vezes ao pódio do que Estados Unidos (11) e China (sete).
Isso tudo é fruto do investimento que vem sendo realizado no esporte olímpico e também pela qualidade geracional que já vem desde a época de Danielle e também de Daiane dos Santos, gaúcha e primeira brasileira a ser campeão mundial, em 2003, em Anaheim, nos Estados Unidos. Somadas a essas medalhas em mundiais, desde então o Brasil também tem seis medalhas olímpicas na modalidade — dois ouros, três pratas e um bronze. Um trabalho que começou com a geração de Danielle e Daiane, passou por Jade Barbosa e Arthur Zanetti e chegou nos últimos anos com Rebeca, Flávia Saraiva e Arthur Nory.
A Confederação Brasileira de ginástica artística tem investido não só financeiramente, mas também na qualidade técnica dos atletas. Antes dos Jogos de Tóquio, por exemplo, fizeram avaliações com árbitros para entender as pontuações dos campeonatos europeus, entendendo as dificuldades das atletas brasileiras e as da Europa, percebendo onde poderiam aumentar as notas.
— Nosso investimento foi no crescimento da modalidade como um todo, pelo conjunto, cada um dando sua contribuição. Está associado a investimento, a um grupo de menina talentosa, mas com uma preparação técnica boa — explica Adriana Alves, coordenadora técnica de Ginástica Artística Feminina da Confederação Brasileira de Ginástica.
O Comitê Olímpico Brasileira (COB) investiu em infraestrutura. Comparado a época de Daiane dos Santos, muitas coisas mudaram, como ela admite. A principal mudança foi no centro de treinamento. A entidade inaugurou em 2015 o CT Time Brasil de Ginástica Artística. O local foi montado na Barra da Tijuca, no Rio, e conta com estrutura completa para o treinamento e recuperação dos atletas das seleções feminina e masculina — foram investidos cerca de R$ 2 milhões.
— A ginástica vem evoluindo ao longo dos anos. Cada vez mais temos um trabalho multidisciplinar, as meninas mesmo falam. Esse grupo de pessoas que compõe esse trabalho é essencial para que esse retorno venha e continue vindo. Isso é um diferencial. Atualmente, nosso ginásio é um dos melhores do mundo. O apoio é maior do que a gente tinha, mas é uma evolução. Temos que ficar muito felizes. Ver esse reconhecimento financeiro e emocional é importante para que a gente continue com esses resultados — analisa Daiane dos Santos, atualmente comentarista de ginástica artística da TV Globo.
Ainda que a base da seleção brasileira seja alicerçada em nomes mais experientes (pelo menos em competições), a equipe feminina que conquistou a prata na Antuérpia já tem um nome da nova geração — caso de Júlia Soares. A curitibana tem 18 anos e esteve em dois aparelhos no Mundial da Bélgica. Apesar de ter caído em sua apresentação no solo, conseguiu se recuperar e fez um solo que ajudou as brasileiras a subirem no pódio pela primeira vez na história.
— Estava faltando justamente um resultado como esse, de uma competição por equipes. O Brasil tem uma escola consolidada. Embora contemos com talentos individuais excepcionais, esse resultado é produto de um movimento muito mais amplo. Aprendemos a fazer, estamos nos aprimorando e, com o Brasil cada vez mais envolvido e apaixonado por esse esporte, não vamos parar mais — afirmou Maria Luciene Resende, presidente da CBG.
O fenômeno Rebeca Andrade
A brasileira ganhou cinco medalhas no Mundial da modalidade. Nunca um brasileiro havia ganhado tantas medalhas em um mesmo Mundial, de qualquer modalidade olímpica. Mas o feito de Rebeca é gigante não só quando colocado em perspectiva dentro do esporte brasileiro. A cena narrada no começo do texto é apenas mais um dos fatos que botam Rebeca no hall de maiores atletas do esporte olímpico a nível nacional.
Depois das medalhas conquistadas na Bélgica, até o perfil da federação de ginástica dos Estados Unidos se rendeu ao talento da brasileira. O @UsaGym postou uma foto da multimedalhista ao lado de Simone Biles com a seguinte legenda “Outras grandes batalhas estão por vir”. Fora dos ginásios, as duas também compartilham de momentos, como quando aproveitaram uma festa depois da finalização do Mundial, no domingo.
Natural de Guarulhos e cria do Flamengo, ela conviveu com lesões durante o começo da sua carreira. Até chegar ao auge, teve de superar três lesões no joelho. A partir de 2021, teve mais regularidade física e se colocou na primeira prateleira da ginástica artística mundial.
Em 2021, nos Jogos de Tóquio, tornou-se a primeira ginasta brasileira a ser campeã olímpica e a primeira ginasta do Brasil a ganhar duas medalhas numa mesma edição de Olimpíada. Além de ser também a primeira latino-americana que se sagrou medalhista e campeã olímpica na ginástica artística feminina.
No mesmo ano, ampliou seus feitos, no Mundial realizado em Kitakyushu, no Japão, quando tornou-se a primeira brasileira a conquistar duas medalhas em uma única edição do torneio. Na temporada seguinte, virou a primeira brasileira a conquistar o ouro na categoria individual geral, feito que também a garantiu como a primeira ginasta brasileira a ser campeã mundial em duas categorias diferentes — individual geral e salto.
Com a campanha na Antuérpia, no começo de outubro, ela é uma das únicas 12 atletas a conquistar medalhas nos cinco aparelhos (solo, salto, barras paralelas assimétricas e trave) na história dos mundiais. Nem mesmo a quantidade de medalhas fez com que Rebeca mudasse sua postura durante as competições e nas entrevistas. De poucas palavras e mais introvertida, a brasileira alcançou um nível de maturidade dentro e fora do ginásio.
— A Rebeca está dando entrevistas maravilhosas. Dentro da ginástica, está muito madura. Na trave, durante a competição, ela percebeu que foi descontada por algum desequilíbrio e mudou a série, dificultando para aumentar a nota e não caiu nenhuma vez. Ela ganhou cinco medalhas. Se ela vencer cinco em Paris, vai se tornar o maior nome da história olímpica do esporte brasileiro. Os números podem ser gigantescos — ressalta Guilherme Costa, especialista em Olimpíada no Grupo Globo.
O nome dela já está no hall de medalhistas, mas os Jogos de Paris podem a botar em outro patamar na história. Caso conquiste quatro medalhas, superará Robert Scheidt e Torben Grael, ambos da vela, que conquistaram cinco medalhas nas Olimpíadas.