Se existe um atleta capaz de encarnar de corpo e alma a sabedoria popular que resume a luta do cidadão brasileiro para sobreviver com dignidade nessa selva chamada Brasil, pode anotar em maiúsculas o nome da gaúcha Mayra Aguiar. Se quisesse, ela já poderia ter desistido. É incalculável o que essa porto-alegrense já ganhou. Aos 15 anos, quando nem faixa preta era, foi prata no Pan do Rio 2007. No ano seguinte, adolescente ainda, a primeira Olimpíada, em Pequim. Nas seguintes, Londres 2012 e Rio 2016, subiu ao pódio: bronze, duas vezes. No feminino, jamais alguém conseguira duas medalhas em esportes individuais.
Enquanto isso, claro, pódios a valer pelo mundo. Mayra é bicampeã mundial de judô, outra façanha inédita. O que lhe falta, aos 29 anos? Justamente o que ela começa a perseguir na madrugada desta quinta-feira (29), em Tóquio: uma final olímpica.
Mas não são as centenas de medalhas, troféus e prêmios individuais conquistados durante mais da metade da sua vida representando o Brasil em todos os cantos do planeta que fazem de Mayra uma pessoa especial. Ela merece a sua torcida pela inverossímil capacidade de cair e se reerguer cada vez mais forte.
E, detalhe importante: sorrindo, como se nada tivesse acontecido, arriscando passos de funk (sim, ela é craque dançando também). Em 2020, essa gremista treinada por Antônio Carlos de Oliveira Pereira, o Kiko — um criador de campeões —, rompeu o ligamento cruzado anterior do joelho direito. Qualquer uma desistiria, com o aceitável receio de fazer feio para as milhões de pessoas que assistem aos Jogos pela TV.
Ao todo, foram sete cirurgias pelo corpo na carreira. Anestesias, hospital, remédios, dores — muitas dores —, disciplina espartana enquanto os amigos curtem a juventude, corrida contra o tempo nos treinos, porque a competição seguinte é logo ali.
A rotina da carreira de Mayra sempre teve a marca da superação. Além da parte física, seus dois bronzes em Londres 2012 e Rio 2016 são páginas emocionantes de resiliência e força mental. Inter e Grêmio, se tivessem o foco desta gaúcha, não estariam na crise em que se meteram. O judô é um esporte cruel nesse sentido. Você cai numa semifinal e, quase imediatamente, já tem de lutar para tentar o bronze.
É preciso sair de uma ducha de água congelada da Sibéria, que é perder a chance de já ter a prata — que pode virar ouro — garantida no peito por uma nova batalha pelo terceiro lugar. Que é significativo, claro. Nas duas vezes, Mayra respirou fundo, mirou o horizonte e voltou ao tatame como uma leoa que defende os filhotes para ganhar e se orgulhar pelo pódio.
— A Mayra é craque. São 15 ouros em Grand Slams e Grand Prix, além do bi mundial. Ela é realmente diferenciada. Fora de série mesmo. O nosso problema foi a cirurgia. Ela se machucou treinando, no mesmo dia em que o Guerrero, do Inter. Lesão idêntica. Tivemos de acelerar tudo, da recuperação aos treinos, com os riscos decorrentes de novas lesões (tendinites, problemas musculares). Isso sem falar no medo, normal, de machucar de novo. Para teres ideia, até a volta no Mundial da Hungria, só tínhamos feito treinos táticos com ela. Entrada e pegada no quimono, por exemplo. Simulações. A chave dela é bem pesada. Só tem fera. A alemã (Anna-Maria Wagner) que foi a última campeã mundial pode ser adversária nas quartas de final — diz Kiko.
Depois do retorno em Budapeste, Kiko aumentou a carga de treinos até o limite do limite. Deu certo. Mayra respondeu bem, sem microlesões. Todos os dias, ao final do trabalho, rezavam juntos por ela estar ali, inteira, pronta para as 24 horas seguintes. Kiko conta muito com a experiência e o emocional para essa nova página de superação. Em Olimpíadas, o mental conta muito. A pressão é descomunal. Só estar bem preparado não é suficiente. O certo é que, se Mayra alcançar o sonho da final, será um roteiro cinematográfico de superação, ainda por cima na pátria do judô. Aí é caso de estátua na frente da Sogipa.
— Tchê, ali antes da luta, ela se transforma. Entra em órbita. Se tu abrires a mão a um palmo da nariz e perguntar quantos dedos tem, ela não responde. O olhar vai para outro lugar. É outra dimensão. Um absurdo de foco e concentração. Tem de respeitar essa guria — emociona-se Kiko.
Nós respeitamos, Kiko. Tenha certeza. A propósito, caro leitor: sim, Mayra quer ir a Paris 2024, sua quinta Olimpíada. Se não for agora, no Japão, que seja na França, aos 33 anos. Torçamos todos na madrugada. Não é todo dia que dá para ver uma Mulher Maravilha gaúcha de carne e osso em ação.
NOITE DE MEIO-PESADOS
As primeiras lutas dos brasileiros
Até 100 quilos masculino
23h35min — Rafael Buzacarini x Toma Nikiforov (Bélgica)
Até 78 quilos feminino
0h40min — Mayra Aguiar x Otgon Munkhtsetseg (Mongólia) ou Inbar Lanir (Israel)