Instantes finais de uma partida eletrizante. Oito gols, quatro para cada lado. Para aumentar a tensão, um pênalti para o visitante. Lance claro na visão de especialistas no assunto. A clareza da jogada não impediu que a infração não fosse marcada no campo. Tampouco o VAR corrigiu o equívoco. A penalidade não marcada a favor do Grêmio contra o Corinthians, na semana passada, foi a cereja de um bolo de erros cometidos pelos árbitros no Brasileirão. O Inter, por exemplo, reclama de penalidades não marcadas a seu favor. Os outros 18 participantes também têm suas listas de contestações.
Implementado no Brasil em 2019, o VAR está em uso em sua quinta edição do Campeonato Brasileiro. Embora diversas decisões tenham sido corrigidas pelos árbitros de vídeo, outras tantas foram questionáveis, criando tanto alvoroço quanto na época em que o auxílio da tecnologia era inexistente.
O tamanho do burburinho a cada rodada evidencia que a questão não é pontual, mas estrutural. O ex-árbitro Sálvio Spinola Fagundes aponta que parte da solução para a melhora da arbitragem no país está em a CBF assumir a formação dos árbitros. Atualmente, a responsabilidade cabe a cada federação, o que dificulta uma maior padronização na tomada de decisão.
— Falta credibilidade. O futebol não acredita na instituição arbitragem brasileira. A CBF não forma árbitro. Ela precisa ser o patrão do árbitro. Precisa mudar de um cenário político para um cenário técnico. São 27 escolas diferentes formando árbitros. É preciso definir um plano estratégico, de curto, de médio e de longo prazo — analisa Salvio.
Na visão dele, ainda há a falta de uma linha de intervenção para a utilização do VAR no Brasil. Também acredita que ter três árbitros na cabine acaba prejudicando. Também acredita haver a necessidade de uma maior capacitação dos homens do apito.
Apesar do burburinhos e de erros claros, Leonardo Gaciba, ex-presidente da Comissão de Arbitragem da CBF, aponta os benefícios da utilização da tecnologia. Baseado em levantamento feito pelo departamento que presidia, aponta que até 2019 ocorriam, em média, cinco erros capitais por rodada na principal competição do futebol brasileiro. O índice caiu para um por rodada.
— As regras do futebol têm 170 anos e ainda não há um padrão. O VAR funciona há sete anos. É só o início. Os números de erros capitais caíram muito — pondera.
As regras do futebol têm 170 anos e ainda não há um padrão. O VAR funciona há sete anos. É só o início. Os números de erros capitais caíram muito
LEONARDO GACIBA
Ex-presidente da Comissão de Arbitragem da CBF
No período em que esteve à frente da Comissão, o atual comentarista do Grupo Disney implementou um modelo para ajudar os árbitros a evoluir. Em casos como o do jogo do Grêmio, em que houve um erro na aplicação do conceito de mão, os envolvidos iriam analisar uma grande quantidade de jogadas similares até estarem seguros do conceito.
Sálvio e Gaciba são filhos da mesma geração de árbitros. Desde que começaram na arbitragem, ouvem conversas sobre a profissionalização. Três décadas depois, nada de prático foi feito sobre o tema. A modificação de status profissional é visto como uma maneira de dar maior tranquilidade a quem vive do apito.
— O árbitro precisa ter uma segurança financeira mensal e ganhar um bônus por jogo apitado. É preciso ter um plano de carreira. Quando ele é punido, como vai fazer para pagar as contas? — argumenta Gaciba.
O termo “profissionalização” é rejeitado por Sálvio, mas ele acredita que a criação de vínculos entre os homens do apito é fundamental para a evolução da arbitragem no país.
— O problema é que a arbitragem é a profissão número 2 do árbitro. Ele precisa ter uma relação jurídica com alguma entidade, ter segurança jurídica e financeira. Hoje em dia, muitos árbitros não tem segurança para seguirem carreira — lamenta.
O caso italiano
Minutos finais de partida. Jogo empatado. Pênalti não marcado. Podia ser o cenário de Grêmio e Corinthians, mas a sequência aconteceu no Campeonato Italiano. Em dividida, Ndoye, do Bologna, foi derrubado por Iling-Junior, da Juventus, na grande área adversária. A jogada em 27 de agosto foi a polêmica mais recente da arbitragem na Série A. Ainda que existam problemas, jornalistas e analistas de arbitragem italianos consultados pela reportagem consideram que o VAR gera poucas crises no Calcio.
Na tentativa da melhora constante, os árbitros italianos são analisados e passam por testes periódicos. Assim como no Brasil, na Itália a comissão de arbitragem avalia publicamente os lances controversos. A conclusão para o erro entre Juventus e Bologna foi de que o árbitro de vídeo fez uma avaliação superficial da jogada.
A comissão de arbitragem faz uma avaliação da atuação de cada árbitro aferindo notas de 8,20 (péssima atuação) a 8,70 (excelente atuação) a cada partida. Quando o apitador deixa de marcar um lance claro em campo, ele tem 0,1 descontado. Caso vá ao VAR e, mesmo assim, mantenha a decisão equivocada, mais 0,1 ponto é deduzido de sua nota.
Árbitros fazem retiros periódicos para analisar erros cometidos recentemente. Os da primeira divisão são submetidos a testes físicos a cada 15 dias. Quem não for aprovado, fica suspenso por um mês. Há um consenso de que há critérios bem definidos para a continuidade do árbitro nas escalas.
A sistemática italiana mantém o árbitro vinculado a uma das quatro divisões profissionais do país durante toda a temporada. Se ele não for bem, será dispensado — os da Série A ganham uma segunda chance na segundona. Se o apitador evoluir no decorrer de seu trabalho, sobe de nível e apita na divisão seguinte. Um árbitro não pode ficar mais do que quatro anos no mesmo patamar, caso atue entre as séries B e D. Caso não suba seu nível de atuações, ele também deixa de fazer parte do quadro da federação.
Aqui os caras são preparados. Desde quando são meninos, de 15, 16 anos e estão começando, sempre são analisados por ex-árbitros em vários aspectos
ANDERSON MARQUES
Brasileiro, ex-árbitro e comentarista da TV italiana
— Aqui os caras são preparados. Desde quando são meninos, de 15, 16 anos e estão começando, sempre são analisados por ex-árbitros em vários aspectos — conta Anderson Marques, brasileiro, ex-árbitro e comentarista da TV italiana.
Um dos aspectos mais criticados no Brasil e na Itália reside na falta de uniformidade no julgamento de jogadas. Lances similares recebem destinos diferentes dependendo de quem está no apito.
— Alguns gostariam de um protocolo mais flexível, que permitisse ao operador do VAR intervir com mais frequência. Mas somente as máquinas poderiam sempre fazer as mesmas escolhas quando confrontadas com um determinado tipo de evento. Mas máquinas não podem julgar e não têm capacidade de autodeterminação. Por isso, sempre haverá uma subjetividade humana. Graças à tecnologia, muitos erros grosseiros foram e estão a ser evitados — avalia Luca Marelli, ex-árbitro e considerado o principal analista de arbitragem na Itália.
Uso do VAR na Premier League sofre ajustes constantes
Primeira rodada da nova temporada da Premier League. Primeira gritaria sobre decisões dos árbitros. Ela se deu nos acréscimos da vitória de 1 a o do Manchester United sobre o Wolverhampton. O goleiro Onana, do United, saiu em cruzamento e seu soco não achou a bola, mas a cabeça do adversário. Nada foi assinalado.
A utilização e as decisões do VAR são pauta constante em veículos de comunicação ingleses. Alguns, mais conservadores, criticam com força a tecnologia. Outros aprovam. Entre as principais ligas do mundo, a Premier League foi a que mais promoveu modificações na utilização do árbitro de vídeo.
Uma delas se deu pelo o que é considerado o erro que causou maior estrago. Em julho de 2020, um gol do Sheffield United contra o Aston Villa não foi marcado — fosse validado o Sheffield teria evitado o rebaixamento. A tecnologia da linha do gol não funcionou, e o VAR não interveio, pois o lance não era de sua alçada, já que existia um recurso exclusivo para verificar se a bola cruzou a linha do gol ou não. Hoje, a regra foi modificada, e a intervenção está permitida.
A interação entre o árbitro de campo e os assistentes de vídeo também foi alterada. Nos primórdios do VAR, era raro o juiz ir ao monitor avaliar a situação. A decisão vinda da cabine era acolhida sem a revisão. Nas últimas temporadas, o árbitro passou a fazer a checagem com maior constância.
Outros aprimoramentos foram realizados. O principal deles relacionado a lances de impedimento. Em casos em que a linha da defesa e de ataque ficam sobrepostas, a jogada será validada. A Premier League, até o momento, optou por não utilizar a marcação semi-automática usada pela Fifa em suas competições.
Para esta temporada, foram implantadas quatro novos ângulos para verificação do VAR. O número de câmeras disponíveis saltou de 20 para 24.
Ainda assim, algumas condutas são contestadas. Nas últimas semanas, chamou atenção uma declaração dada por Mike Dean, ex-árbitro inglês e que, agora, atua como VAR. Apesar de ver uma irregularidade, optou por não chamar o árbitro de campo.
— Hoje, eu chamaria o Anthony (Taylor, árbitro) ao monitor. Foi um jogo complicado. Eu não queria chamá-lo porque ele é um companheiro e também um árbitro. Acho que não queria chamá-lo porque não queria mais dor do que ele já tinha passado — disse em um podcast, ao comentar sua atuação no jogo entre Chelsea e Tottenham na temporada passada.
Com diferenças e similaridades, evolução e contestação, o VAR ainda não passa incólume nem no Brasil, nem na Europa.