O levantamento veio da esquerda na medida, e com um tapa de chapa Raphinha marcou em sua estreia pelo Barcelona na terça-feira (21). Foi um amistoso de pré-temporada, um gol que pode ser esquecido pelas estatísticas — os europeus só contabilizam jogos oficiais —, mas a trajetória do cruzamento até o pé do atacante percorreu uma distância simbólica imensurável, infinitamente maior do que os 11 metros percorridos pela bola. O lance une duas realidades opostas. Em uma ponta está uma grife do futebol mundial, uma das camisas mais glamourosas do esporte, capaz de atrair alguns dos craques mais cobiçados do mundo. Na outra, surge a Restinga, uma das regiões mais pobres de Porto Alegre.
Foi no extremo sul da capital gaúcha que o novo atacante do clube espanhol desenvolveu suas primeiras habilidades no futebol. Para contar com os dribles e gols do porto-alegrense, o Barcelona desembolsou R$ 354 milhões (fora os bônus capazes de anabolizar o preço final do negócio). O valor corresponde a quase 71 meses de repasse de verbas públicas ao Hospital da Restinga, cálculo feito com base no sétimo aditivo de colaboração publicado no site do estabelecimento. Em frente à instituição, a Praça Santa Efigênia abriga um campo meio de terra, meio de grama, como tantos outros do bairro onde Raphinha iniciou sua trajetória.
O preço para efetuar a contratação junto ao Leeds United poderia comprar 3,9 milhões de bolas verde-negra como a que rola no campo da Quinta Unidade. Adquirida semana passada, ela é a única ainda incólume aos chutes e divididas da garotada do "Craque Sim, Pedra Não", projeto social de aulas de futebol para crianças e adolescentes da região.
O local de jogo tem grama somente em áreas específicas. As goleiras são desprovidas de redes. A grade de proteção na lateral vergou. A umidade do inverno porto-alegrense transformou a parte ainda não gramada em barro. Nada que desanime Carlos Charão, o homem à frente do projeto.
— Não deixo eles sem futebol. Estou todos os dias no campo. Não estou aqui para competir, estou aqui para salvar vidas. Um exemplo desses faz diferença. Outros já foram exemplos. Hoje é a vez do Raphinha. Sempre tem dois ou três Raphinhas pela Restinga — garante.
Tudo ali é resultado do esforço dele. As imensas pedras no terreno foram tiradas não apenas para tentar formar futuros Raphinhas, mas para dar oportunidade para os jovens fintarem os problemas que pipocam pelo bairro.
Não estou aqui para competir, estou aqui para salvar vidas. Um exemplo desses faz diferença. Outros já foram exemplos. Hoje é a vez do Raphinha. Sempre tem dois ou três Raphinhas pela Restinga
CARLOS CHARÃO
Responsável pelo projeto "Craque Sim, Pedra Não" na Restinga
Quando Raphinha ainda não tinha atravessado o Mampituba em busca de chance e atravessar o Atlântico para jogar futebol era um sonho distante, os garotos de Charão sofriam para parar um dos 26 jogadores que devem ser chamados por Tite para a Copa do Mundo no final do ano. Raphinha foi criado em outra região da Restinga, jogando em equipes como a Cobal, o Udinese F.C. e o Monte Castelo. Agora, mesmo distante, virou um aliado.
A ascensão do conterrâneo em um ano tão significativo para quem gosta de futebol serve como um holofote para iluminar o caminho a ser seguido por aqueles que chegam para jogar no campo da Quinta Unidade.
— Isso dá ânimo para as crianças serem alguma coisa. É um incentivo — se anima Luis Carlos Vieira Farias, o Seu Farias, uma referência na Restinga quando futebol e criança aparecem na mesma frase.
Ainda é cedo para mensurar o quanto Raphinha influenciará a gurizada da Restinga, mas alguns sinais são vistos. A injeção de ânimo apontada por Seu Farias pode ser notada a olho nu. As camisas do Barcelona se multiplicam nos treinos do "Craque Sim, Pedra Não".
As perspectivas, segundo Charão, são as melhores possíveis, pois, como ele diz, "Raphinha é daqueles que mata a bola na caixa, deixa escorregar na coxa e larga ela (a bola) de trivela". O tapa de chapa na estreia foi o cartão de visita para fazer a garotada da Restinga sonhar alto, afinal o novo atacante do Barça é da Restinga, como eles.
Projeto de novo Raphinha
A falta de apoio e a pandemia cortaram um pouco do incentivo externo, mas o fôlego de Charão para seguir ensinando as crianças a jogar se mantém intacto. Hoje, atende cerca de 30 jovens, mas o projeto contou em um passado não muito distante com 120 crianças e adolescentes. Dentro do campo, ele caminha e aponta para a molecada. Explica que um vai treinar no Inter, o outro vai ir para o Grêmio. Conta que tem outro que já está na base do Tricolor. Para cada garoto, surge uma história.
Acompanhado por um bolo de guris, começa a citar nomes que passaram por suas mãos e que tentam seguir carreira em alguma equipe do Estado. Cada um dos citados causa uma chuva de elogios por parte da criançada em volta. "Craque, fera e muito bom" são os adjetivos mais utilizados para falar daqueles que tentam seguir carreira.
No meio da conversa, Charão aponta para um garoto baixinho, o dedo precisa ser veloz para acompanhar a rapidez do pequenino com ares de Ronaldinho Gaúcho.
— Aquele vai jogar no Barcelona — profetiza Charão, aproveitando a chegada de Raphinha ao clube espanhol para elogiar Kelvin William Pereira.
O projeto de craque tem 7 anos e está todo paramentado com camisa e calção do Barça. O guri é tímido nas palavras, mas extrovertido com a bola. Perguntado se é tão bom quanto todos comentam, resumiu a resposta em uma palavra:
— Sou.
No meio de uma garotada de tamanhos variados, alguns provavelmente com mais que o dobro do seu peso, ele não se intimida. Mostra ginga, gira sobre a bola, passa de primeira. Toca e se movimenta para receber. A bola é um imã que magnetiza Kelvin William, que, em passos curtos e rápidos, está sempre próximo dela.
— O que mais gosto é de driblar — explica o guri, antes de dar as costas ao repórter para correr em busca do próximo drible.
A partir dos 9 anos, Charão tenta encaixar seus maiores talentos nos clubes, principalmente o Grêmio, onde tem maior entrada. No caso de Kelvin William, por ter futebol no corpo, pulará fases. Dois anos antes do tempo, o menino deve tentar uma vaga no Grêmio para, quem sabe, em pouco mais de uma década ser mais um craque oriundo da Restinga.
Poucos times para a gurizada
O "Craque Sim, Pedra Não" é um trabalho de resistência. Com o passar do tempo, a quantidade de campos da Restinga diminuiu. Times com espaço para as crianças jogarem também estão em quantidade reduzida. Cobal e Monte Castelo foram equipes onde Raphinha jogou quando ainda morava na Restinga. Nenhum dos três resistiu às dificuldades de fazer futebol infantil.
O Monte Castelo aguentou até o começo da pandemia. Depois, não teve forças para continuar. Aos 78 anos e sem a mesma saúde da mocidade, Seu Farias procura alguém que possa lhe ajudar a reativar os trabalhos com a gurizada.
— O que eu fazia não era bem uma escola de futebol, era mais um entretenimento para ensinar as crianças a viverem em conjunto. Pretendo, lá por setembro ou outubro, tentar movimentar alguma coisa de novo — planeja Seu Farias.
A manutenção da equipe de veteranos desses times é considerada mais fácil. O trabalho com crianças exige mais dedicação e tem custo mais elevado devido a compra de uma quantidade maior de materiais. Foi esse cenário que fez Celso Brum descontinuar há seis anos o time de garotos do Cobal, que entre os veteranos conta por vezes com a presença de Tinga e Fabiano.
— Falta investimento. Precisa de muita coisa. Trabalho em uma escola e tenho uma lancheria — justifica Brum.
Os discursos são corroborados por Charão, único responsável por manter o campo na Santa Efigênia em condições de receber as crianças.
— Não tem condições de manter sozinho. As entidades não se mexem para ajudar. Não tenho quem me dê bola — relata, apontando para a bola verde-negra comprada por R$ 90 na semana passada.
Mais do que um desabafo, sua declaração é um pedido de ajuda para que a produção de Raphinhas continue na Restinga.