Nascido com uma má formação congênita, Daniel Dias contrariou as estatísticas e tornou-se um dos maiores atletas do mundo. Nas Paralimpíadas de Tóquio, neste ano, deu suas últimas braçadas em competições.
Dono de 27 medalhas no maior evento poliesportivo do mundo, o paulista de Campinas agora se dedicará à família e a outros projetos relacionados ao paradesporto, como é o caso do Instituto Daniel Dias, fundado em 2014 e que forma novos atletas. Ele garante que continuará lutando por bandeiras e pautas já levantadas durante sua carreira nas águas, mas como membro do Conselho de Atletas do Comitê Paralímpico Internacional, da Academia Laureus, do Conselho Nacional de Atletas e da Assembleia Geral do Comitê Paralímpico Brasileiro.
Poucos dias depois de voltar do Japão, conversou com GZH sobre o esporte como ferramenta de inclusão e também seus próximos passos na gestão esportiva.
Como está a aposentadoria?
Estou descansando, conseguindo aproveitar os meus filhos. Ainda é cedo para falar sobre como está sendo, mas estou aproveitando ao máximo cada momento com eles. É recente, cheguei de Tóquio faz poucos dias, então ainda estou tentando entender como funciona essa vida de ex-atleta.
O que você projeta para o futuro como gestor dentro do esporte paralímpico?
Eu sempre falava que não teria como ficar longe do esporte. Já tinha projetos como o Instituto Daniel Dias. A gente está fazendo várias reuniões para colocá-lo a funcionar. Esperamos que em janeiro tudo esteja redondinho para que consigamos dar oportunidades para muitas crianças. Tem a nova função do conselho de atletas do Comitê Paralímpico Internacional, que estamos a todo vapor trabalhando. Após os Jogos, a gente acaba recebendo muitas mensagens de atletas relatando problemas ocorridos durante as Paralimpíadas. Estou tomando posse também como membro da Academia Laureus, faço parte da Assembleia Geral do Comitê Paralímpico Brasileiro, do Conselho Nacional de Atletas. São muitos projetos, muita coisa para fazer. Vou continuar, mas minhas braçadas, agora, serão fora da piscina.
Tempos atrás, você deu uma entrevista dizendo que seu maior legado seria dar mais visibilidade ao esporte paralímpico. acredita que sua carreira e as 27 medalhas paralímpicas deixam esse legado que você desejava?
Acredito que sim. São 27 medalhas, é incrível. Vejo que o esporte paralímpico está em uma crescente muito bacana. Fico feliz de fazer parte dessa história. Se eu pensar quando eu comecei, o tanto que o esporte paralímpico evoluiu e cresceu... Acredito que sim, que esse legado vai ficar, e continuarei trabalhando para reforçá-lo.
Há outras histórias de meninos que não foram campeões no esporte, mas que foram campeões na vida. Formaram-se no projeto e estão dando aula de natação. Esse é nosso papel, formar campeões na vida.
DANIEL DIAS
Sobre o instituto que leva seu nome
O Instituto Daniel Dias forma novos talentos em São Paulo desde 2014. Você disse que, em janeiro, quer botar o projeto de novo na rua. Como está a situação?
O instituto vem fazendo um trabalho de formiguinha, difícil. Sei que isso vai tomar um bom tempo da minha vida, mas é algo em que eu acredito, o esporte como ferramenta transformadora. Com a pandemia, infelizmente, a gente não fechou, mas replanejou tudo. Tivemos de dispensar os atletas. Por isso, temos de começar o trabalho do zero. É complicado, mas vale a pena. Tinha um menino que estava em Tóquio, o Andrey (Garbe): ele veio do Instituto. Há outras histórias de meninos que não foram campeões no esporte, mas que foram campeões na vida. Formaram-se no projeto e estão dando aula de natação. Esse é nosso papel, formar campeões na vida.
Como o esporte pode ser ferramenta de inclusão para a pessoa com deficiência?
Por meio do esporte, o deficiente entende que pode realizar o que sonha. Quando aprendi a nadar, por exemplo, e passei a conviver com muitos atletas, esse universo paralímpico incrível me mostrou a capacidade que eu tenho de me reinventar e de fazer a diferença. Nem todos os deficientes querem ser atletas, mas o esporte vai ajudá-los a entender que campeões na vida todos nós podemos ser. O esporte ajuda a pessoa com deficiência a entender que a deficiência não define quem ela é. É só uma característica. Se eu for me apresentar aqui para quem está nos lendo, posso falar que eu sou o Daniel Dias, atleta paralímpico, tenho má formação congênita. Estou me apresentando, é uma característica, mas jamais uma definição. Na piscina, na pista, no campo, na quadra, onde for, somos iguais em capacidade. Somos diferentes, sim, mas iguais na capacidade de realizações e concretizações dos nossos sonhos.
Desde a criação da Lei Agnelo/Piva, no começo dos anos 2000, o Brasil passou a investir mais no esporte. Além disso, o Bolsa Atleta também passou a agraciar os paratletas. Como você vê o investimento público e privado no esporte?
O incentivo é fundamental para que o esporte evolua e a gente consiga ter resultados. Para ter conquistas, precisamos de investimentos. Realmente o Bolsa Atleta e o Bolsa Pódio vêm contribuindo muito. São diversos atletas que hoje conseguem dedicar a sua vida ao esporte graças a esses incentivos do governo federal. O incentivo privado está aquém do que a gente gostaria, mas também vem em uma crescente. Após a Paralimpíada de Londres (em 2012) começou esse crescimento, começaram a olhar o esporte e a natação paralímpica de outra maneira. Em 2016, no Rio, foi um marco, para a gente realmente mostrar o valor das Paralimpíadas. Houve recorde de público, inclusive superando os Jogos Olímpicos. A gente vê que as empresas estão começando a entender que é rentável, que é viável acreditar no esporte paralímpico.
Se o investimento no nosso esporte paralímpico brasileiro fosse maior, sem dúvida o Brasil entraria fácil no top 5. Conseguiríamos bater de frente com países que estão na nossa frente, não ficar só em sexto, sétimo, mas brigarmos para ser terceiro, até segundo no quadro de medalhas.
DANIEL DIAS
Sobre o incentivo às modalidades paralímpicas no Brasil
A Paralimpíada do Rio de Janeiro também deixou um legado para o esporte paralímpico brasileiro, como a construção do Centro de Treinamento em São Paulo. Como está a questão estrutural para os paratletas no país?
Sim, o grande legado foi o CT paralímpico, em São Paulo. Sabemos a importância dos investimentos, mas também o quão fundamental é o atleta treinar em uma estrutura de primeira, que realmente faz a diferença. Não tenho dúvida de que, com essa estrutura, a gente já vai colher muitos frutos nos próximos Jogos.
Como você enxerga a diferença de atenção da mídia entre os jogos olímpicos e os paralímpicos?
Essa pergunta tem de ser jogada para todos. A gente também não consegue entender. E a divulgação é muito importante, mais as pessoas conhecem o esporte paralímpico e passam a acompanhá-lo. Muita gente não acompanha por falta de divulgação mesmo, por não conhecer. Mas as coisas estão melhorando. O esporte paralímpico é novo no país, então é pouco a pouco. Se eu pensar desde a minha primeira Paralimpíada, em Pequim (2008), até agora, em Tóquio, estamos vindo em uma crescente.
Desde 2008, quando foi nono no quadro de medalhas, o Brasil se consolidou no top 10, terminando em sétimo em Tóquio. Como você vê a consolidação brasileira como potência paralímpica?
Isso coroa um trabalho que vem sendo feito, não só pelo Mizael (Conrado, presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro), mas tamém pelo Andrew (Parson, hoje presidente do Comitê Paralímpico Internacional, e que antes presidiu o Comitê Paralímpico Brasileiro). Tóquio foi diferente porque tivemos mais medalhistas, principalmente na natação. Nossas conquistas não ficaram tão concentradas em alguns atletas. Isso comprova que o trabalho está bom.
Na sua entrevista após a última prova em Tóquio, você fez críticas à forma de classificação das categorias da natação paralímpica, chamando a alteração de sistema realizada em 2019 de "uma bagunça". Esse tipo de crítica parece ser uma pauta coletiva dos atletas. Por quê?
Exatamente. Essa não é uma pauta só do Daniel Dias ou do André Brasil (nadador brasileiro medalista paralímpico, que teve sua classificação para Tóquio impugnada com a mudança). Há muitos atletas no mundo que foram afetados. Foi uma mudança realizada no meio de um ciclo olímpico. Vamos ficar no exemplo do André. Ele foi a três Paralimpíadas, ganhou 14 medalhas em Jogos e, de repente, não é mais apto a ser um atleta paralímpico. Isso não faz sentido. A gente entende que houve regressão. Hoje, se perguntarem "Daniel, como que funciona a classificação na natação paralímpica?", minha resposta será que ela é subjetiva, inconclusiva, confusa. Nós não conseguimos explicar. Essa foi uma das coisas que me fizeram querer entrar no Conselho de Atletas do Comitê Internacional. Foi uma pauta que levantei conversando com os atletas, para que a gente possa brigar por ela coletivamente. A gente só quer o benefício do esporte paralímpico. Sabemos que a classificação precisava passar por uma mudança, mas ela teria que melhorar o esporte, e não foi o que ocorreu.
Que outras pautas você pretende levar para debate no Conselho?
Essa é a principal, mas temos outras coisas a melhorar. Os calendários de provas, não só da natação, mas de outras modalidades. O tênis de mesa teve um problema sério de mudanças de regras um mês antes dos Jogos. São algumas pautas que a gente vem recebendo de atletas com os quais a gente vem falando. Vamos ter muito trabalho.
Um debate que também foi suscitado durante as Paralimpíadas é por que países que têm desempenho tão bom nas Olimpíadas, caso da França, da Alemanha e do Japão, não conseguem repetir a performance nos Jogos Paralímpicos.
É difícil até da gente falar, mas acredito que seja uma questão de investimento. Eu sinceramente vejo que, se o investimento no nosso esporte paralímpico brasileiro fosse maior, sem dúvida o Brasil entraria fácil no top 5. Conseguiríamos bater de frente com países que estão na nossa frente, não ficar só em sexto, sétimo, mas brigarmos para ser terceiro, até segundo no quadro de medalhas. Conversamos com atletas e a impressão em geral é a mesma. Após essas conversas, você acaba percebendo como o sistema funciona como um todo e se dá conta de que o investimento no esporte paralímpico no país, de uma forma geral, não é tão significativo quanto o investem no esporte olímpico. Isso faz diferença. Faria em qualquer âmbito, não só no esporte.
Você é uma figura importante no movimento paralímpico internacional. Como enxerga o futuro do esporte paralímpico brasileiro?
Precisamos ter esses planejamentos para os próximos ciclos. Acho superpossível estarmos no top 5 em Brisbane (em 2032), conforme projetado pelo Mizael, com os investimentos crescendo, com a evolução que o esporte paralímpico vem tendo no país. Acho superpossível alcançar essa posição até antes desse cronograma, que me parece mais conservador. No entanto, o trabalho tem que ter continuidade. Não pode, após o Mizael sair, entrar outro presidente no comitê e não dar sequência ao belo trabalho, que, repito, começou com o Andrew.
Você fez elogios ao esporte paralímpico brasileiro, mas costuma deixar claro que existem aspectos que deixam a desejar. Quais críticas você faz ao movimento no Brasil hoje?
Acho que a gente falou de coisas muito positivas e o quanto o esporte paralímpico brasileiro cresceu e evoluiu. Hoje, uma das críticas que faço é que precisamos nos profissionalizar mais, tanto o esporte brasileiro quanto o internacional. Essa é uma das coisas pelas quais tenho brigado. Quanto mais a gente profissionalizar, melhor serão os resultados.
Fomentar o esporte, como uma ferramenta, vai ajudar a tirar o deficiente dessa condição de escondido. Tirá-lo de casa ainda criança, levá-lo a praticar algum esporte e atividades, se desafiar, se valorizar. No instituto, a gente não vai ter só atividades esportivas. Pretendemos também ter outras coisas, como pintura, dança, oficinas.
DANIEL DIAS
Sobre seus projetos no instituto
Quando se fala do deficiente que não é um esportista de alto rendimento ou uma figura pública, a gente sabe que, com frequência, ele fica "escondido" na sociedade. Como você vê essa situação no Brasil e no mundo?
Acho que você falou uma palavra muito legal. Os deficientes acabam ficando escondidos. A gente sabe que isso existe no nosso país. Eu sei que há muitos deficientes que ainda estão trancados em casa, e esse é mais um dos motivos pelos quais projetos como o do Instituto Daniel Dias são fundamentais. Fomentar o esporte, como uma ferramenta, vai ajudar a tirar o deficiente dessa condição de escondido. Tirá-lo de casa ainda criança, levá-lo a praticar algum esporte e atividades, se desafiar, se valorizar. No instituto, a gente não vai ter só atividades esportivas. Pretendemos também ter outras coisas, como pintura, dança, oficinas. A gente quer que o deficiente saia de casa e se integre à sociedade, para que ele possa, cada dia mais, trabalhando, ser incluído. É preciso que ele entenda que é possível, que ele consegue fazer isso. Para que a gente possa melhorar e de fato quebrar as barreiras do preconceito, precisamos começar a ver mais pessoas com deficiência à frente de projetos, sendo excelentes advogados ou outras profissões, enfim, o que a pessoa quiser ser. Precisamos de outros projetos como o instituto para isso.
Em uma das suas primeiras respostas, você falou que recebeu muitas críticas dos paratletas sobre as Paralimpíadas de Tóquio. Que críticas foram essas?
Houve as críticas que eu falei do tênis de mesa, em relação ao calendário e outras mudanças realizadas de uma hora para a outra. Teve o caso do nosso atleta do atletismo que foi medalha de ouro e, 10 horas depois, perdeu a medalha. Volto àqueles termos que usei antes: a crítica que eu faço é que precisamos profissionalizar o esporte paralímpico, não só o brasileiro, mas o internacional. Essas mudanças repentinas mostram que há muito amadorismo. Ficamos tristes de ver esse tipo de coisa em Paralimpíadas. A questão da reclassificação da natação, em 2019, é outro exemplo. Tem muita coisa que o esporte paralímpico internacional precisa crescer, evoluir.
Em uma entrevista, Maria Carolina Santiago (nadadora cinco vezes medalhista em Tóquio) comentou que imagina que as próximas Paralimpíadas tenham menos multimedalhistas na natação. Como você imagina que surgirão os próximos Danieis (Dias), Gabrieis (Bandeira e Araújo), Marias Carolinas na natação paralímpica brasileira?
Acho que cada dia mais será difícil ter multimedalhistas, e isso é muito positivo. Estou falando porque o esporte cresceu, evoluiu e vou entrar no termo "profissionalização" novamente. Surgem novos atletas e vejo com muito bons olhos as próximas Marias, Gabriéis, Daniéis. A gente mostrou em Tóquio o quanto o esporte cresceu. Veio o Gabrielzinho (Araújo), nosso dançarino, e conquistou medalhas. Um menino que me viu nadando na Rio 2016. Já estava, cinco anos depois, subindo ao pódio. Gabriel Bandeira descobriu que poderia ser atleta neste ano. Tivemos muitos medalhistas, não vou citar mais nomes porque vou esquecer de alguns. Estou chegando a perder a conta dos medalhistas que o Brasil teve em Tóquio – que coisa boa, maravilhosa. Mais um motivo para me deixar em paz com a minha aposentadoria. Antes, era uma grande preocupação quem iria dar continuidade. Hoje já dá para dizer que há atletas que vão dar continuidade à história que a gente vem construindo para o esporte paralímpico brasileiro.