A Arena mudou a fotografia dos bairros Humaitá e Vila Farrapos, na zona norte de Porto Alegre. Desde a sua inauguração, em dezembro de 2012, muitas casas no entorno foram pintadas de azul, preto e branco para recepcionar os milhares de torcedores que passaram a frequentar aquelas ruas de uma hora para outra. Independentemente da paixão clubística, muitos moradores transformaram suas residências em bares, lanchonetes ou estacionamentos privados — afinal, o aumento significativo de circulação na região representava a possibilidade de incrementar a renda familiar. Este foi o cenário desenhado até aquele 12 de março de 2020, quando Grêmio e Inter se enfrentaram pela fase de grupos da Libertadores.
Cerca de 54 mil pessoas estiveram nas arquibancadas assistindo ao primeiro Gre-Nal da história do torneio sul-americano, mas nem todos que ficaram do lado de fora do estádio tiveram motivos para lamentar — pelo contrário. O clássico trouxe lucro para muitas famílias. Mal sabiam elas que seria a última noite.
— Em dia de jogo grande, como foi aquele, a rua seguia movimentada até umas 5h da manhã. Quando cheguei em casa, fui conferir se havia fechado o carro e vi uma coisa atirada no meio da rua. Eu me aproximei, falei com um dos garis que estavam limpando a calçada e notei que era uma churrasqueira (portátil), com mesinha e kit completo. Pensei: "Olha o presente que eu estou ganhando! Vou reformar o carrinho e vou vender chope e churrasquinho também" — recorda Vladi Silveira, 35 anos, que trabalhava como revendedor de cerveja artesanal.
Ledo engano. Em 2019, Vladi havia largado o emprego na recepção de um hostel para investir cerca de R$ 6 mil em seu novo projeto. Reformou sua minivan — carinhosamente chamada de Cindy — e comprou equipamentos, como torneiras, serpentina e válvula extratora. Morando a apenas três quadras da Arena, o negócio parecia perfeito. Nem mesmo o amor pelo Grêmio lhe impediu de dar as caras nos arredores do Beira-Rio em dias de jogos do Inter. Acompanhado da esposa Danielle Arêas e da sogra Rose Marie Silva, ele estacionava o carro em frente a estádios ou casas de shows e enchia centenas de canecas de chope por noite. A pandemia, porém, acertou em cheio o planejamento da família, que precisou se reinventar neste último ano. Depois de encarar os primeiros meses fazendo tele-entrega para um restaurante, voltou a trabalhar na recepção do hostel recentemente.
— No início de 2020, peguei três barris de 20 litros, fiz apenas três jogos e acabaram os eventos. Eu tinha R$ 600 no bolso e tive de escolher: pagava os barris ou sobreviveria. Escolhi sobreviver. A sorte é que o dono da cervejaria (Brew Masters) é amigo da minha família e disse que eu poderia pagar quando tudo voltasse ao normal. Mas, como o carro ficou parado aqui na frente de casa, ele não anda mais. Eu precisaria consertá-lo se quisesse rodar de novo — conta.
O empreendedor
O dia 12 de março de 2020 também ficou guardado na memória de dois empreendedores que atuam do outro lado da cidade. Naquela noite, Gabriel Nunes, 27 anos, e Arthur Tochetto, 25, fecharam as portas do estabelecimento mais cedo e rumaram para a Arena, onde assistiram ao jogo em meio à torcida colorada. Donos do bar Dezenove Zero Nove, localizado em frente ao Beira-Rio, os amigos aguardavam ansiosamente pelo Gre-Nal do returno. No entanto, os protocolos de saúde fizeram com que a partida fosse disputada somente seis meses depois, sem a presença de público nas arquibancadas.
— Eu e meu sócio juntamos uma grana e demos um peitaço. Não tínhamos capital de giro. Abrimos e fomos batalhando. No primeiro ano, empatamos o que havíamos investindo e, quando ia começar aquela folga, veio isso tudo. Foi um baque inimaginável no faturamento da empresa. O jogo sempre foi o nosso carro-chefe. Então, fomos bem prejudicados. Nós sempre trabalhávamos com estoque alto de cerveja e estávamos com o estoque garantido para a semana seguinte. O que venderíamos no próximo jogo durou dois meses — explica Gabriel.
Criado no final de 2018, o espaço é todo ornamentado com pinturas e quadros que fazem referência aos ídolos e às conquistas do Inter. Aos poucos, foram agregados outros serviços também, como estúdio de tatuagem e salão de barbearia. Durante o período de bandeira preta, o barbeiro Matheus César, de 24 anos, não pôde mais atender. Assim, o único setor da casa que funciona é o restaurante, realizando entregas por delivery.
— Tivemos de desligar o pessoal que trabalhava com a gente. Hoje, eu e meu sócio nos viramos entre a cozinha e o atendimento. Nossa margem de lucro vinha da bebida. Na comida, não dá, porque o gás e o óleo estão caros, e a gente não consegue vender 300 pratos por dia. Em dia de jogos, vendíamos entre 40 e 50 caixas de cerveja. Só na final da Copa do Brasil de 2019, a gente vendeu a mesma coisa que nos 30 dias do mês de janeiro deste ano — completa.
O trabalhador
O prejuízo não foi somente de quem investiu. A covid-19 também destruiu postos de trabalho. A estudante de Enfermagem Lisiane da Rosa — mais conhecida pelo apelido Negralisi —, 30 anos, viveu isso na pele. Funcionária da Flavored Popcorn, uma das empresas terceirizadas que mantinham os bares da Arena do Grêmio, ela perdeu o emprego assim que o público foi impedido de comparecer aos estádios.
— Fiquei com 80% da minha renda comprometida. Como eu sou bolsista, a faculdade me paga R$ 400 de bolsa, mas eu costumava contribuir em casa com R$ 2 mil. O futebol me ajudava a comprar jalecos, livros e alguns equipamentos que a gente precisa. Agora, não posso ir mais para o estádio e, como não sou formada, também não posso ajudar o pessoal na área da saúde ainda — relata.
Além da redução drástica de renda, Negralisi ainda viu o custo familiar aumentar nos últimos meses, quando se tornou mãe pela terceira vez. Para se adequar ao novo quadro financeiro, ela e o companheiro resolveram mudar de endereço, trocando o apartamento no bairro Cidade Baixa por um aluguel mais barato em Viamão.
— Tive de me reinventar. Depois que parou tudo, criei uma loja online de venda de roupas, mas é tudo muito difícil. Não tenho carteira assinada. Mantenho contato direto com o pessoal e garantiram que a vaga ainda é minha, mas não temos perspectiva para voltar. Ao mesmo tempo que eu não quero que volte, pela questão da segurança, eu me questiono: para onde vamos? — desabafa.