Por Fernando Spilki
Professor da Feevale, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV)
Ser virologista e trabalhar diariamente com a covid-19 nos arrasta para um universo similar ao de um sonho – ou pesadelo – como aquele do filme A Origem, de Christopher Nolan. A narrativa se dá por lembranças pontuais de momentos insólitos. Para mim, a primeira reminiscência do que viria a ser a pior crise sanitária desde a gripe de 1918 se deu em janeiro. Férias, beira do mar, observando de longe as crianças se divertindo com a minha amada, toca o celular. O repórter de uma agência internacional de notícias:
– Professor, o que acha do surto de coronavírus na China?
Sem titubear, respondo “ah, meu amigo, acho que vai dar para segurar, tranquilo”. Eu obviamente estava enganado. Em fevereiro, somos alertados pela situação que se instala no norte da Itália. Enfrentar um vírus como o Sars-CoV-2 no Ocidente – “Milano non si ferma”, lembram? – não é tarefa fácil.
Dias depois, vem a segunda memória inesquecível. Ao ver a disseminação sustentada do vírus em São Paulo no início de março, digo a um amigo: “Estamos vivendo o prenúncio de uma catástrofe, aperte o cinto e respire fundo, o impacto vai ser duro”. Infelizmente eu estava certo dessa vez.
Em meados daquele mês tudo para, inclusive o futebol. Em abril, um colega virologista comenta que estavam falando de retomar o futebol no final de julho, “que absurdo”, ao que respondi: “Não vai ter clima, o impacto vai ser tão duro que o pessoal só vai pensar em se proteger”. Conheço mais os vírus do que as pessoas. Temos mais de 42,5 mil casos confirmados de covid-19 no Rio Grande do Sul. No dia previsto para o reinício do futebol, serão, no Estado, cerca de 1,3 mil óbitos acumulados (118 times de futebol), segundo o Institute for Health Metrics da Universidade de Washington. Quero que abdiquemos de toda atividade que nos alivie desse peso? Não. Mas a visão que quero trazer é de saúde pública.
Jogadores, técnicos e auxiliares têm sido monitorados com testes rápidos, de valor diagnóstico questionável, mas vêm sendo testados. Então me permitam questionar: serão totalmente coibidas as aglomerações durante os jogos? Talvez seja factível ao redor dos estádios, mas em outros locais, nos quais as pessoas se mantêm frequentes, mesmo que clandestinamente? Duas horas de contato são um tempo considerável para a transmissão. E os outros profissionais envolvidos no espetáculo, serão testados e resguardados da mesma forma que os craques?
Além da questão sanitária, futebol é economia, riqueza e negócio. Sim, envolve empregos, ninguém nega. Serão buscadas também soluções alternativas e sanitariamente seguras para outras atividades econômicas? Se a bola de fato vai rolar, que se dedique mais de um minuto de silêncio às vítimas da pandemia, que se use a transmissão também para educação e para alertar que, ao contrário do que pensam alguns, o pesadelo ainda não passou.