Há menos de um mês da tragédia do Ninho do Urubu que vitimou jovens atletas do Flamengo, não há nos círculos do futebol uma discussão mais aprofundada sobre a situação das categorias de base no país. Mesmo com o MP exigindo atitudes dos clubes, o que se vê é uma tentativa de manter "o que aí está".
A grande maioria das categorias de base vive em situações abaixo do aceitável: alojamentos caindo aos pedaços, saneamento básico insuficiente, alimentação irregular (um clube grande alimentava seus atletas com salsichas e biscoitos, por exemplo) e zero cultura de prevenção a riscos.
Há, no "país do futebol", uma cultura de se romantizar a falta de respeito dada às categorias de base. Ela nasce e é incentivada pela turma do "futebol testosterona" dentro dos clubes e por muitos ex-boleiros que trabalham junto aos jovens e que repetem como mantra o "no meu tempo não tinha essa mordomia toda, não".
Não deixa de ser um mecanismo perverso sustentado por aquela ideia de que "se na minha vez eu sofri muito, na sua você tem que sofrer a mesma coisa". Além disso, as cifras que envolvem o futebol hoje não são as mesmas de 10 anos atrás. Quem dirá de 20, 30, 40 anos. E isso gera recalque e uma projeção de frustração em muitos profissionais.
O CT de Cotia, do São Paulo, muitas vezes é criticado por essa turma por ter uma infraestrutura diferenciada, com muita qualidade e profissionais de primeira linha. Dizem que estão "mimando demais" os jogadores e eles saem "sem alma" da base. Essa cultura sustenta que jogador tem que "sofrer" na base para se tornar um "guerreiro" no profissional.
Em um país que ainda não se livrou das correntes escravagistas em nossas relações pessoais, pensar que para formar um jovem profissional ele precisa "comer o pão que o diabo amassou" é revoltante. Ainda mais sabendo que pouquíssimos daqueles jovens vingarão como profissionais e sempre são vistos como um "ativo financeiro" do clube, do empresário e até mesmo da família, que tem que aceitar essa cultura em nome de uma chance de mudar de vida.
Os clubes precisam investir em infra estrutura na base, mas principalmente, precisam saber que são responsáveis por crianças e jovens no momento mais crucial das suas vidas, onde eles se formam como pessoas e cidadãos. É possível ser competitivo e profissional sem precisar sofrer e viver precariamente. Esta é a mudança que eu gostaria de ver na pauta das discussões sobre categorias de base no Brasil.