Nesta semana a revista Placar lançou uma edição especial colocando a Neymar como o melhor jogador brasileiro pós-Pelé. E isso gerou uma discussão sem fim em programas de TV e rádio e nas redes sociais. Todo mundo que se interessa por futebol fez sua lista de jogadores preferidos e entrou na discussão.
Como polêmica e debate, foi válido e até divertido. Mas como visão e entendimento do esporte, essa discussão só aponta o quanto nós ainda não conseguimos compreender o futebol como um esporte coletivo e insistimos em analisá-lo como se fosse um esporte individual. E isso fala muito do nosso país e da nossa sociedade.
No Brasil temos dificuldades de entender processos sistêmicos. Não conseguimos enxergar dinâmicas coletivas e sempre preferimos a dialética do herói e do vilão. Precisamos ter um "salvador da pátria" e um "bispo para reclamar". Seguimos achando que um presidente ou um governador irão realizar milagres e não precisam do trabalho coletivo do Congresso, da Assembleia e da população no geral.
E principalmente, olhamos com mais carinho para o atacante talentoso e driblador e para os artilheiros. Ainda assistimos ao jogo olhando apenas a bola e esquecemos que em 90 minutos de partida, um jogador toca no máximo um minuto na esfera. Todo o trabalho dele nos outros 89 minutos não são levados em conta.
O livro Os Números do Jogo de Chris Anderson e David Sally traz uma pesquisa científica que comprova que pagar mais por atacantes é um erro do mercado. Não são os melhores ataques que ganham títulos, e nem as melhores defesas. É o equilíbrio entre as partes. Nesse sentido, um zagueiro ou um goleiro tem o mesmo valor e peso que um armador ou um centroavante. Mas nossa cegueira nos leva a valorizar mais o atacante do que o defensor.
NINGUÉM JOGA SOZINHO
O futebol é um esporte onde as individualidades atuam em torno de dinâmicas coletivas, na disputa pelo controle de três elementos fundamentais: os espaços, a bola e o tempo. Se pegarmos o Santos campeão da Libertadores de 2011, se não fosse o controle dos espaços de Arouca e Elano e o controle do tempo de Ganso, Neymar não conseguiria ter o controle da bola nas partidas como teve. E vice-versa.
Durante muitos anos, se treinou o futebol como se fosse um esporte individual. Isso mudou radicalmente nos últimos 15 anos e hoje, o chamado "método integrado" trouxe situações e dinâmicas do jogo para serem treinadas coletivamente. Principalmente, para tentar emular desafios da partida e estimular os atletas a responderem coletivamente dentro do modelo de jogo do time.
Hoje importa mais a capacidade do atleta entender o contexto do jogo e os comportamentos coletivos para a partir daí sim tomar as melhores decisões individuais e potencializar suas características e alimentar o coletivo de volta, em um círculo virtuoso que leva a um desempenho satisfatório.
As características que influenciam em uma partida de futebol nunca se repetem. Ainda mais comparando com décadas passadas, onde a bola era outra, o uniforme era outro, a metodologia de treino outra, a alimentação, tudo era absolutamente diferente. É impossível comparar a qualidade de um atleta dos anos 1960 e 1970 com um dos anos 2010. Impossível!
A CIÊNCIA PROÍBE
No método científico, para comparar processos e resultados, é necessário que todos os elementos envolvidos sejam absolutamente idênticos nas partes. Então, para comparar Neymar com Zico, por exemplo, seria necessário que ambos jogassem exatamente com os mesmos companheiros e adversários, no mesmo estádio, no mesmo horário, com a mesma bola, temperatura ambiente, torcida e pressões psicológicas. E ainda assim, seria injusto e impreciso.
Para que Mbappé e Pogba brilhassem na final da Copa do Mundo, foi necessário um trabalho impecável de Kanté e Matuidi. Por que esses dois últimos não são elevados a consideração de craques como os primeiros? Se Marcelo Grohe e Geromel não tivessem feito milagres na Libertadores talvez Luan não tivesse chance de ser o "Rei da América". Se Tinga não fosse o motorzinho que era, talvez Sobis e Fernandão não brilhassem em 2006. E por aí vai.
A gente pode até gostar e achar divertido comparar jogadores ao longo das épocas. Mas precisamos ter consciência de que isso não tem nada a ver com o jogo jogado. Tem a ver com nosso idílio de buscar heróis e vilões, de ter ídolos e achar que um individuo sozinho vai resolver tudo. No futebol, isso não existe. Cada movimento de um jogador sem a bola, influencia na ocupação do espaço e no controle da bola e do tempo.
Pelé foi um gigante em seu tempo, mas não teria sido sem o trabalho de todos os que com ele jogaram. A mesma coisa para Neymar, Romário, Ronaldo e Zico. E essa é a magia única do futebol: caótico, aleatório, sistêmico e absurdamente coletivo.